22.2.12

Um Desejo Absurdo de Sofrer

Por Maria Filomena Mónica

NA SEQUÊNCIA da publicação do meu ensaio «A Morte», optei por terminar o fim do ano na Capela dos Ossos, em Évora. Antes, atravessei outra, da Ordem Terceira de S. Francisco da Penitência. Foi com as imagens de Cristo arrastando a cruz e de uma Virgem com setas dirigidas ao coração que olhei o pórtico neo-clássico onde se pode ler: «Nós ossos que aqui estamos pelos vossos esperamos».

Construída no século XVII, a fim de que os homens pudessem recordar a brevidade da vida terrena, a Capela dos Ossos compõe-se de três naves decoradas com 5.000 caveiras e tíbias. O que impressiona não são tanto estas, mas as múmias penduradas, uma de um corpo adulto e outra de uma criança. Ultrapassado o nojo, fiquei com vontade de medir os crânios. Tendo em conta a evolução da espécie humana, aposto que são mais pequenos do que os actuais, mas eu não estava ali como a agnóstica, que sou, mas como alguém que vivera por dentro aquela religião.

Há quem pense que esta capela é única no mundo. Foi isso que me disse um casal de turistas do Porto com quem me cruzei à entrada. Conhecendo a mania nacional de considerar as mais variadas coisas como típicas, decidi ler alguns livros sobre o assunto e descobri que há dezenas de capelas semelhantes espalhadas pelo mundo. É, no entanto, verdade que, se olharmos a distribuição por países, Portugal vem à cabeça, com oito capelas integralmente decoradas com ossos. No estrangeiro, o crânio mais imponente - os restos de S. Pancrácio metidos dentro de uma armadura de oiro - está guardado numa capela em Wil, na Suíça, e o mais rico, o do mártir Alexandre, na Basílica alemã de Waldsassen.

Apesar de saber que o tema interessa os leitores, tenho um limite de palavras a respeitar, pelo que termino já. Mas não sem mencionar uma exposição lindíssima, Cuerpos de Dolor: A Imagem do Sagrado na Escultura Espanhola, 1500/1750, que, até o próximo dia 25 de Março, está patente no Museu Nacional de Arte Antiga. Por razões que não descortino, quando lá fui, não havia um único visitante, pelo que tive o privilégio de a ver rodeada de silêncio.

Como se diz no catálogo, se comparada com a de mármore, a estatuária de madeira policroma é tida como menor, mas possui uma morbidezza única. A Virgem Dolorosa, que vem na capa, é bonita, mas há outras estátuas belas, como o Caminho do Calvário, onde a morte é transformada em espectáculo. Como remate, escolhi os joelhos de dois centuriões, esculpidos por Alonso Berruguete, para o Retábulo-Mor da Igreja de San Benito El Real, de Valladolid. Rosados, sobressaem a meio de pernas ligeiramente musculadas terminando em sandálias de cano alto. Foram os romanos que me fizeram regressar ao mundo dos vivos. Sei que sou pó e que em pó me vou tornar, mas, antes, quero abandonar o masoquismo que marcou a minha infância. A crise não ajuda, mas hei-de lá chegar.
«Expresso» de 18 Fev 12

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2 Comments:

Blogger José Batista said...

Atenção, tendo a capela dos ossos sido construída no século XVII é de admitir que os esqueletos sejam desse tempo ou de um tempo não muito anterior. Ora, a evolução (variação) do tamanho do crânio não deve ser perceptível a uma escala temporal tão reduzida. E depois há o exemplo do volume craniano dos "neandertais", extintos há cerca de 30 000 anos, entre os 1400-1500 cm3, bem maior do que os cerca de 1300-1400 cm3 de volume da caixa craniana dos humanos atuais.
Sendo certo que o aumento do tamanho da massa encefálica é correlativo com a progressiva "humanização".

22 de fevereiro de 2012 às 21:33  
Blogger Laura Cachupa Ferreira said...

Tudo isto e outros "nonsense" são devidos a ter-se vivido a infância na Rua Rodrigo da Fonseca, estudado num colégio de freiras, só ter tido contacto com a pobreza através da entrega, esporádica, de esmolas aos pobres, pela mão das freiras, ter "criadas", etc., etc...
Enfim, uma cabecinha com alguma coisa dentro, mas com muitos "chochos".
Os preconceitos nunca se apagam.

23 de fevereiro de 2012 às 11:05  

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