Leituras para um verão incendiado
Por Ferreira Fernandes
ESTÁ
quase tudo nos livros. Neste caso, num dos mais belos livros escritos
na nossa língua, Luuanda, de Luandino Vieira. Zeca Santos, garoto
estouvado dos musseques, anda sem trabalho, o pouco dinheiro de biscates
ele gasta com camisa e regressa esfomeado à cubata onde vive com a avó.
Há dois dias que não comem, a velha até já tentou cozer raízes de
dálias. Nessa noite, porém, Vavó Xíxi dá uma esperança ao miúdo: "Olha
só, Zeca! O menino gosta peixe de ontem?" Zeca Santos até passa a língua
pelos beiços secos, suspira: "Vavó sabe que eu gosto. Peixe de
ontem..." Então, a velha diz: "Se gosta peixe de ontem, deixa dinheiro
hoje, para lhe encontrar amanhã..."
Ontem, uma bela moradia da Camacha
estava invadida de gente, donos e vizinhos tentavam afastar as chamas
das traseiras. Aquela casa era a mais próxima do fogo, mas toda a
fileira de vivendas dava as costas para mato bravio. Os bombeiros ainda
não tinham chegado, rapazes atiraram-se para a piscina e passavam baldes
de água para as mulheres e homens que defrontavam o incêndio. Depois do
muro era mato seco e árvores de copas juntas, tudo varrido por línguas
de fogo.
Se no outono e inverno se abrissem caminhos nos terrenos
baldios e na primavera se limpasse o mato, encontrar-se-ia, amanhã, o
verão de que se gosta. Isso diria a Vavó Xíxi, tão longe e tão certa.
«DN» de 22 Jul 12 Etiquetas: autor convidado, F.F
3 Comments:
Eu não percebo. Não percebo mesmo.
Então, o que se gasta com carros de bombeiros, arranjos permanentes desses carros, combustíveis, equipamentos, aviões, etc, não dava para, nos meses de janeiro, fevereiro e março, limpar, com "lança-chamas", não digo roçar o mato, não, que isso faz muitas feridas e calos nas mãos, os perímetros à volta das casas de habitação e mesmo das estradas nacionais?
Claro que primeiro se devia, se não está já, definir na lei que esses espaços só seriam objeto de limpeza, se os donos o não tivessem feito antes, do modo que entendessem.
Creio que se evitava muito prejuízo material e, sobretudo, muita dor de alma.
Já nem falo de ordenamento florestal, que nós somos mais de produzir licenciados rápidos em relações internacionais, por exemplo.
Mas, de verdadeiramente útil, que fazemos?
E os nossos oráculos sócio-político-económico-etc só prevêem as catástrofes depois de estarmos atolados nelas.
Meu Deus, o que eles sabem, em contraste com a miséria em que nos afundamos...
É que as preocupações deles são mais, digamos, as próximas presidenciais...
E os lençóis de palavras que, a esta distância, já vão produzindo, para que não nos esqueçamos deles...
Uns colas. Elegantes, mas colas.
Este ano fica muito espaço para se cumprir a vontade da ministra Cristas, que é a da plantação de eucalíptos, que rendem que nem o euromilhões.
Não sou eu que o digo: os incêndios dão de comer a muita gente.
Pois, não me admira.
Já houve em tempos uma luminária que defendia a eucaliptização do país, referindo-se-lhe como uma riqueza a que chamava "petróleo verde".
Lembro-me que um professor meu de Coimbra, de nome Jorge Paiva, ia avisando:
- Petróleo verde não, mas altamente inflamáveis sim.
E é o que se tem visto.
Mas as celuloses agradecem.
Agora se isso dá de comer a muita gente, Caro R. da Cunha, não tenho inteira certeza, embora tenha por certo que tirarão futuro a muita mais...
A nossa floresta vai-se. Porque ter uma monocultura de eucaliptos, ora cortados, ora ardidos (condição em que têm o mesmo valor e até rendem mais para quem os compra aos proprietários aflitos, que têm que os entregar por qualquer oferta...), ainda por cima obtidos por clonagem, o que significa que são todos geneticamente iguais, com o consequente empobrecimento de biodiversidade, não é ter uma floresta, dizia eu, é ter um enorme, e monótono, e verde cinzentão, e estéril... eucaliptal.
Mas o nosso povo aceita tudo. E não exige nada. Pelo menos de modo bem pensado e em devido tempo.
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