Coisas sólidas e verdadeiras
Por Manuel António Pina
O LEITOR que, à semelhança do de O'Neill, me pede a crónica que já traz
engatilhada perdoar-me-á que, por uma vez, me deite no divã: estou farto
de política! Eu sei que tudo é política, que, como diz Szymborska,
"mesmo caminhando contra o vento/ dás passos políticos/ sobre solo
político". Mas estou farto de Passos Coelho, de Seguro, de Portas, de
todos eles, da 'troika', do défice, da crise, de editoriais, de
analistas!
Por isso, decidi hoje falar de algo realmente importante:
nasceram três melros na trepadeira do muro do meu quintal. Já
suspeitávamos que alguma coisa estivesse para acontecer pois os gatos
ficavam horas na marquise olhando lá para fora, atentos à inusitada
actividade junto do muro e fugindo em correria para o interior da casa
sempre que o melro macho, sentindo as crias ameaçadas, descia sobre eles
em voo picado.
Agora os nossos novos vizinhos já voam. Fico a
vê-los ir e vir, procurando laboriosamente comida, os olhos negros e
brilhantes pesquisando o vasto mundo do quintal ou, se calha de sentirem
que os observamos, fitando-nos com curiosidade, a cabeça ligeiramente
de lado, como se se perguntassem: "E estes, quem serão?"
Em breve
nos abandonarão e procurarão outro território para a sua jovem e
vibrante existência. E eu tenho uma certeza: não, nem tudo é política; a
política é só uma ínfima parte, a menos sólida e menos veemente,
daquilo a que chamamos impropriamente vida.
«JN» de 1 Ago 12 Etiquetas: MAP
2 Comments:
Caro Manuel António Pina,
Atenção aos gatos, que esses não costumam afastar-se da política que lhes está na natureza (nos instintos).
Bastam poucos dias, que os melrachos com poucas horas de treino de vôo se põem a salvo. Mas, se se descuidam...
É que a Natureza é assim. Também tem a sua "política". Que é terrivelmente dura, as mais das vezes.
Bons tempos de Verão para si. E que se danem os nossos políticos. Praticamente todos.
Estimado Manuel António Pina:
Quando se é mestre na forma e na substância não interessam os melros de que fale. Há os outros melros que nos ficam a picar as feridas e a devorar a alma.
Foi um prazer esta leitura. Estimulante, como sempre.
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