Olhares em vias de extinção
Por Ferreira Fernandes
MARIO De Biasi foi o grande repórter fotográfico do levantamento de
Budapeste, em 1956, mas foi outra foto sua que me ficou estampada na
memória. De Biasi é o autor da foto que teve o mesmo papel das
alcachofras alla giudia, os contos de amores difíceis de Italo Calvino e
as cores velhas de Roma - o de formar a minha ideia de Itália. Ele deu
àquela foto um nome irónico: "Os italianos voltam-se" (1954). Com uma
exceção, a do homem com o jornal dobrado no bolso, toda a multidão de
homens não se volta (pelo menos, ainda): encara uma mulher. Todos, o da
lambreta, os que sorriem e os que a medem, o operário gingão e o burguês
engravatado, de barba cinzenta e cuidada, todos (mais de 20 capazes de
serem reconhecidos) olham-na de frente, a ver chegar a Dama de Branco.
Ela vai para eles. No centro da foto que lhe presta homenagem, ela, toda
de branco, sapatos, malinha de mão e vestido que, justo, lhe vem da
meia perna, subindo, coleante. As curvas, outra ironia, são também
evocadas por uma tabuleta naquela praça: "Zucca". Em italiano quer dizer
melancia. Não sabemos se os italianos se vão voltar; provavelmente,
vão. E ela talvez goste do efeito que causa, há uma satisfação sugerida
pela inclinação da nuca. De Biasi morreu esta semana, em tempos em que é
raro o que aquela foto mostra. Caiu em desuso olhar assim e gostar de
ser olhada assim (e por algumas boas razões). Mas uma coisa é certa: o
objeto daqueles olhares é soberbo.
«DN» de 29 Mai 13Etiquetas: autor convidado, F.F
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