À espera de quê…?
Por Antunes Ferreira
ESTÁ sentada à
esquina da vida esperando, quem sabe?, a morte. Juliana tem quase 94 anos,
claudica pendurada de um bordão a fingir de bengala, na boca ressequida
sobram-lhe nove dentes enquistados em gengivas desmaiadas, de cor indefinida a
desfazer-se em branco.
Um banco de cozinha, em madeira, serve-lhe de âncora no meio
do calcetado do passeio e um gato de telhado esconso faz-lhe companhia. É um
felino tão negro como vestido dela, de amores nocturnos diversos em telhados
avulsos e chama-se Bolinhas. Vadio de profissão, acompanhante da velha de
militante, adora peixe, mesmo com espinhas e pardais, por isso lhe chamam o céu
dos pássaros, que é a barriga dele.
Juliana tem dois filhos, uma filha e quatro netos todos
machos. Que não lhe ligam nenhuma. Em tempos – ela lembra-se das partidas dos
três, mas não se recorda em ano isso aconteceu – foram-se para a cidade,
amanharam-se e nem novas nem mandadas. Disse-lhe a vizinha Sara (será que foi a
Sara? Ou terá sido a Deolinda?, que
estão bem, encontrara a Julinha, com dois filhos, ela e eles aperaltados, a
entrar para um carrão, num bairro fino da tal urbe.
Com uma cana brava – mas será que há canas mansas? - desenha
figuras estranhas no chão de terra nem sequer batida. Se ela própria não
entende as linhas caprichosas que rascunha, alguém que passe como as compreenderá?
Lá longe ouvem-se os sinos da igreja (são três nunca se perceberá porque três…)
a chamar os fiéis ou os sovinas que batem no peito e suam orações e
penitências, em busca falsa do perdão que não merecem. Mas fingem merecer.
Todos os dias, sem falhas, o rogo do bronze ressoa e
espalha-se pela freguesia. Juliana espera ser chamada para comungar dos ritos –
que serão os ritos? – aspirar os sândalos e lavar-se na pia da água benta. Mais
uma questão se lhe levanta, ela nem sabe porquê. Que é preciso fazer para
ganhar a vida eterna? E outra: haverá essa tal vida eterna?
Ou será tudo uma efabulação, mais uma palavra que não
descobre nos caminhos da vida que vem percorrendo, sabe-se lá desde quando e
por onde. Certo, certo é o seu cajado, amigo nas horas más, encosto seguro e
garantido, de resto o único em que pode confiar. No resto são apenas águas
passadas que em tempo moeram o trigo nas azenhas, mas agora não.
Os percalços e os arremedos de cada dia, mais do que o pão e
o pai nosso, são-lhe cada vez mais familiares, como se isso pudesse ser. E a
verdade é que são, tal como os arreganhos e as negaças. A muleta dá-lhe a pouca
confiança que vai tendo, misturada com a paciência que também a acompanha, a
todas horas, a todos os momentos, sempre.
Sempre, de resto, é coisa que lhe vai rareando, a passagem
do tempo, medido no relógio da torra da igreja dá-lhe a sensação de estar
sentada sem saber levantar-se – ou não poder – porque se foram amontoando as
dores e sulcando as rugas que nem repara porque não tem espelho, só possui a
esquina, o encosto e o banco de pau em que assenta os ossos também eles
encarquilhados.
Não faz mal, acostumou-se aos pontapés dos outros, às
punhadas de mais não sabe quem, ao sopro balofo de caraça de embusteiro, ao
riso pintado a branco de palhaço. É então que pensa: o circo vai continuar, com
os que se equilibram no arame falhado, com os domadores de ideias, com os
ilusionistas do cartaz anunciador. É assim a vida? Será mesmo ela? Ou a vida é
mais do que isso, do gesticular dos truões, do tilintar dos talheres numa mesa
farta?
Ontem, foram-na encontrar feita numa rodilha, de olhos
esbugalhados, o xaile negro descambado, um susto, meninas, vizinhas de umbral
de porta, um grande susto, disse a Deolinda no velório. Família nem vê-la.
Padre só para a encomendar (para onde?)
No caixão, morta, ela está à espera da vida. Qual? Só há
uma.
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