14.8.13

Urbano

Por Baptista-Bastos
SEDE de eternidade, tem o homem", escreveu Octavio Paz, num belíssimo poema. Nunca conheci ninguém, como o Urbano, com essa sede de eternidade que resultava de uma ânsia de estar em largo fôlego. Foi embora com a modéstia de uma vida afinal cheia de turbulência e de perigos vários. E é uma parte substancial da nossa existência como nação e como pátria que com ele embarca. A pátria da honra e da coragem, da decência e da recusa. A nação sagrada da língua, que ele cultivou como quase nenhum; dos valores eternos num mundo flutuante, precário e maldoso; do contrato natural entre os homens, que ele sempre desejou como irmãos, e por isso se bateu com denodo.
A ideia do homem como irmão do homem possui algo de religioso. Mas religião significa religar. Não faz mal nenhum que a procura do humano seja o transcendente e comporte uma parcela de fé. O Urbano tinha-a e mantinha-a: a crença insubmissa de que o futuro da nossa condição passa por esse caminho tortuoso, por essa "sede de eternidade", afinal o desejo de ser feliz e irmão do outro que é o mesmo.
Uma existência longa, desafiante, frequentemente fora do cânone que, afinal, se desintegra numa aglomeração de preconceitos e de convenções de grupo. Na densa e variada floresta da obra de Urbano, a exigência ética é um dado fundamental. Ele pertencia a uma estirpe de moralistas franceses (Montaigne, Gide, Malraux, Sartre, Camus e Merleau-Ponty) para os quais a "participação", a "interveniência", estabeleciam os elementos mais seguros dessa ética.
David Mourão-Ferreira disse, certa ocasião, que, um dia, como Vitorino Nemésio fizera, com Gomes Leal, alguém seleccionaria as páginas mais significativas de Urbano, e, então, a grandeza deste surgiria na exacta dimensão do seu enorme talento. Porque nos livros do autor de A Noite Roxa (onde se inclui uma belíssima obra-prima, a novela Escombros), a procura dos laços sociais associava-se a uma espécie de força de revelação que tem muito a ver com a fé. Fé no futuro, no sentido da História, nas praticamente infinitas possibilidades de transformação que o homem possui, sem, porventura, disso se aperceber.
A faculdade de diálogo, como exigência social, é uma constante em Urbano, porque ele entende que a literatura exprime uma interpretação da História. Não há outro ficcionista português que expresse essa "alma" dos valores esquecidos. Não há outro ficcionista português que consiga celebrar o mundo no meio deste caos, e nesta desesperança. Claro que sentia e sofria cada vez mais, à medida do seu próprio envelhecimento, o adiar da esperança. Nem por isso o ressentimento e o rancor dele se apossaram. "Apesar de tudo, isto vai, porque tem de ir." Uma frase que condensava essa fé inabalável. A voz estava mais flébil, mas o encanto de viver, esse, ressurgia sempre.
Urbano Tavares Rodrigues. Adeus.
«DN» de 14 Ago 13

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