Horas vulgares
Por Baptista-Bastos
Choveu,
de madrugada, e a rua onde vivo tem pequenos charcos que refulgem ao
sol da manhã. Acordo normalmente cedo e gosto de ver o movimento das
pessoas, encaminhando-se para os seus destinos certos. Quando era rapaz e
trabalhava de dia para estudar à noite, utilizava o carro eléctrico
operário, sempre cheio de uma gente sonolenta e triste, que mal sorria. O
carro eléctrico operário funcionava até às 7.30, e os vidros das
janelas embaciavam-se com a respiração das pessoas. O bilhete era azul e
longo, para se distinguir dos normais, e permitia ida e volta por sete
centavos e meio. Iam lá muitas varinas, e as canastras podiam ser
colocadas na retaguarda. Poucos falavam entre si. Hoje, recordo que iam
acabrunhados e experimentados na rotina trágica que concentrava quem
viajava no carro operário. As imagens vão desfilando, e há inúmeras
delas que sempre me acompanharam. As vozes e os rostos é que já se
perderam, e tenho pena. A minha avó, por exemplo, que também utilizava o
operário, como era a voz dela?
Porque me lembrei dela? Talvez
porque os meus dois netos, o Francisco e o Manuel, vêm passar cá a
tarde. Dia em que só ligamos a televisão para o canal Panda, e eu
livro-me de recapitular as caras medonhas destes que tais, que moldam o
meu presente, talvez o futuro dos meus netos, e me assustam porque não
sei como deles me livrar. A Isaura diz-me: "Não te apoquentes tanto. As
coisas mudam e nem sempre isto será assim."
Mas sinto-me muito
cansado. E as palavras, agora, de tão prostituídas e gastas, já não
alvoroçam nem atiçam as indignações. Porém, continuo a batucá-las e a
perfilá-las com confiança e alento. Há muitos anos, um dos meus filhos, o
Pedro, perguntou-me: "Ó pai, escrever custa muito?" E eu: "Às vezes até
se morre."
Não as palavras destes mentirosos, que as não
respeitam, que as soletram com frivolidade, ignorância e desprezo. Que
nos aconteceu para merecermos esta afronta? Alguma coisa fizemos, talvez
mesmo contra Deus, uma imperdoável blasfémia ou uma distracção dos
nossos deveres; talvez, quem sabe? Mas os miúdos?, estes milhares de
miúdos que vão para a escola em jejum, que fizeram? Noutros tempos, é
verdade, eu próprio, de manhã, só comia uma fatia de pão preto com pouca
manteiga, um copo pequeno de café. Noutros tempos; mas agora?
Não
me estava nada a apetecer escrever as filípicas habituais que consagro a
estes manguelas. Eles enojam-me. A casa ainda não despertou, olho para a
fieira de fotografias que marcam a minha vida e o meu destino;
reavivam-se os meus camaradas de jornais, tantos, tantos que já foram, a
demonstração de que estou velho, sento-me à mesa de trabalho, penso nos
meus netos com emoção e orgulho. Os meus netos. Ó avó Palhaça, agora
sou eu.
«DN» de 2 Abr 14 Etiquetas: BB
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home