ÁGUA DE COCO - Um condutor/“secretário”
Para se atravessar o estuário do Mandovi há duas pontes
e o ferryboat. Pangim estende-se modorrento ao lado do rio, lembrando, salvo as
devidas proporções, Lisboa namorando o Tejo. Na outra banda não é Cacilhas nem
Almada, nem está o Cristo Rei. Encontra-se lá Betim ou seja o local em que os
ferreis atracam e outras localidades das quais a mais importante é Porvorim.
Cresceu num instante quando lá foram construídos os edifícios do Governo e da
Assembleia de Goa. Deste lado, a marginal leva a um local bonito com uma
esplanada, a Riviera pertença do hotel do mesmo rio: Mandovi. Foi o primeiro
com traço mais moderno construído nos tempos dos portugueses.
A esplanada é ampla e tem numa segunda zona um espaço
para recepções, “pequenos” casamentos ou baptizados, aniversários ou primeiras
comunhões, ou seja festas para 400 convidados, mais coisa menos coisa. Convém
não esquecer que casamentos e baptizados “normais” andam pelas 1.500/2.000
cabeças. Claro que não é toda a gente que se permite organizar celebrações
desta dimensão, católica ou sobretudo hindu. É, naturalmente necessário haver
posses para isso. Aliás no Estado há mais recintos preparados para tais
eventos. Já estive num em Margão, noutro na quinta Valadares e mais um junto de
Mapuçá, que hoje se escreve Mapusa mais tem o mesmo som.
Mais uma curiosidade se mo permitem: o concanim não tem acentos nem cês
cedilhados. Por isso esta solução. Por exemplo a segunda urbe é Margao e
continua a ler-se Margão. De resto o som ão não falta: patrão é patrao e
acabou-se. O concanim é uma língua das 72 que existem na Índia. Poderia
pensar-se que é um crioulo. Nem pó. Incorporou bastantes palavras portuguesas,
algumas com naturais corruptelas. E também se usa o inglês quando se trata de
números. Por exemplo, no meio de uma frase em Concanim aparece para mencionar o
tempo 12 pm. O que quer dizer meia-noite. Na verdade em português diz-se 12
horas em vez de meio-dia…
Parecendo que não há em Goa muito dinheiro, tem de corrigir-se a ideia: há,
principalmente hindus, mas também católicos e uns quantos muçulmanos… Há
muitos Mercedes e BMW dos modelos mais
recentes e caros, há vivendas de sonho com piscinas e courts de ténis. Há
hotéis e resorts de preços altos. Verifica-se aqui o drama que percorre
todo o subcontinente indiano; uma diferença abissal entre os muito ricos e
os muito pobres, acentuando a bipolaridade: os bilionários e os miseráveis.
Corram-se as aldeias e veja-se, da estrada, as condições em que vivem os
habitantes de casas a cair de podres.
Isto quer dizer, uma outra vez, que entrando numa casa de um hindu
trabalhador se pode dar conta do que se viu de fora. O nosso
condutor/”secretário” para quem sou o seu padrinho de seu nome Premanand Ankush
Pednekar que nos conduz impecavelmente e sem quaisquer problemas – Sir paga
no fim… - teve um problema cardíaco. Operado de urgência, foram-lhe colocados
baipasses pois tinha seis obstruções por coágulos. Obviamente ainda não pode
trabalhar. E sabe-se lá quando. Por isso ao chegarmos ninguém dava conta dele,
de tal maneira que cheguei a recear o pior. Felizmente foi encontrado:
sossegámos. Ele já é da nossa família…
Apesar da convalescença ter começado cinco ou seis dias antes, naturalmente
depois de lhe ter dado alta, quando soube que estávamos em Goa, um cunhado que
também é taxista, transportou-o bem como uma irmã dele para nos visitar. E tal
era o desejo de o fazer que subiu os três lances da escada que levam ao nosso
apartamento. Foi uma cena patética abraçados os três, a Raquel, eu e ele.
Enfim, chorámos todos - da emoção. Vinha magro e esquálido com a faixa de
cabedal tipo colete pós operação, ligaduras, gazes e etc. Penso que podem
imaginar a cena…
Passei-lhe uma descasca por se ter arriscado e disse-lhe que nunca mais o
queria ver a subir tantos degraus. Sorriu, um sorriso amarelo, but Sir,
aqui não há mas nem senhor, disse-lhe
fingindo-me zangado, mas por dentro o meu coração sangrava. Tinha de o dizer.
Sentou-se na nossa sala como sempre o fez. Estava triste mas satisfeito por nos
ver e conversámos um pouco; a mulher, que há dois anos conhecíamos, tinha
abortado aos cinco meses dum menino. E a filha Babita, um amor de criança,
bonita e dada, com dois anitos, não podia estar com o pai porque passava o
tempo a tentar sentar-se ao colo dele – o que para já não pode ser porque lhe
buliria com os elementos de segurança: colete, ligaduras, pensos et aliud. Ela
naturalmente ansiosa da ternura do pai que lhe retribui; adora-a.
A irmã tinha ido ao carro buscar dois caixotes de cartão
e um saco de viagem que continham todos os nossos pertences (para que quando
voltássemos não gastássemos rupias com compras desnecessárias -
versão do Premanand…) que tínhamos deixado para guardar e trouxe tudo tal como
havíamos deixado. Mais um engolir na garganta. Foram-se embora levando as
prendas que lhes eram destinadas, incluindo a roupinhas de bebé que trazíamos
para o filho afinal perdido. Fica para o próximo disse a Raquel um tanto
encavacada… (o termo não tem nada que ver com o suposto PR que
ocupa o palácio de Belém, sem contrato de arrendamento, por isso sem pagar
renda, electricidade, gás e água!)
Ontem fomos visita-lo a Fattawada – Nerul, onde na House 18 vive
acompanhado por duas irmãs pois a esposa tinha ido com a menina para casa dos
pais dela. Foi uma festa à nossa chegada. Como tenho andado apoiado numa
bengala cedida pelo Zito Menezes - nomeado, para além de médico, nosso anjo da
guarda privativo… - uma delas veio esperar-nos à porta do “quintal” afastou um
cão que por ali fazia a sesta e ajudou-me gentilmente a descer os degraus de
pedra solta que davam para a casa; nesta, outra escada de pedra introduziu-nos
na habitação - eu sempre com a ajuda carinhosa da senhora.
Premanand avisado da nossa chegada aguardava-nos com um sorriso de face a
face, estava melhor, ganhara quilos, mas mantinha o colete de cabedal com o
qual deveria ficar mais uns tempos, dissera-lhe o médico no hospital na última
consulta de controlo da evolução do paciente. Luziam-lhe os olhos, e
abraçou-nos comovido mas também orgulhoso da nossa visita. Tive de “ordenar” a
paragem da emoção; às vezes é difícil tomar decisões, mas elas têm de vir à luz
do dia e tão pronto quanto seja possível. Arriscar a recuperação para nos ver
era perigoso e podia ter consequências complicadas.
Ali ficámos mais de uma hora; a casa era pouco apresentável, mas a simpatia
das pessoas fazia-nos ignora-la; uma das irmãs trouxe-nos dois copos de sumo de
manga, umas bolachas e uma ventoinha de pé alto. Quando um pobre nos dá
agasalho com calor humano, mesmo que seja pouca a oferta, ela sabe melhor do
que um banquete em casa dum rico. O nosso condutor/”secretário” queria voltar a
visitar-nos, proibi-o de subir os lances da escada e combinámos que ele
esperaria em baixo e depois iríamos almoçar todos. Acordo alcançado,
regressámos a casa.
Pelo caminho a Raquel e eu recordámos o jantar de despedida que Premanand e
senhora nos tinham oferecido no ano passado. O que, numa sociedade como esta em
que as castas continuam a imperar e o elitismo é regra, motivou uns quantos
comentários menos elegantes, Um motorista que sempre se sentou à nossa mesa
quando saíamos era um tanto, como direi?, desprestigiante para quem permitia e
sobretudo convidava; mais a mais um pacló (português
branco,,,)
Estava-me, estou-me e estar-me-ei nas tintas para tais ditos. Para mim os
homens são todos iguais, com tonalidades de pele diferentes, com olhos mais ou
menos oblíquos, de cores diferentes, com cabelos mais crespos ou mais lisos mas
com tudo o resto igual, desde os órgãos internos até às unhas dos pés,
avultando o coração e o cérebro os mais importantes e paradoxalmente os mais
sensíveis. Digam o que digam os falsos comentadores, enquanto não me provarem o
contrário continuarei a pensar que vozes de burro não chegam ao Céu. Dando,
obviamente, de barato, que ele existe...
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