SUPERFÍCIES DE APLANAÇÃO, UMA INEVITABILIDADE DO CAMPO GRAVÍTICO TERRESTRE
Planície alentejana com
a Serra do Caldeirão no horizonte.
Desenho de João Alveirinho Dias
Por A. M. Galopim de Carvalho
Do mesmo modo que tudo cai de cima para baixo por força da gravidade e uma vez que, no nosso planeta, existem agentes promotores de erosão, as montanhas tendem a ser arrasadas e os materiais resultantes dessa erosão acumulados nas depressões. Se não houvesse forças internas que, de tempos a tempos, geram montanhas, sejam elas de que tipo forem, a superfície dos continentes seria tão plana quanto a das águas em repouso.
Do mesmo modo que tudo cai de cima para baixo por força da gravidade e uma vez que, no nosso planeta, existem agentes promotores de erosão, as montanhas tendem a ser arrasadas e os materiais resultantes dessa erosão acumulados nas depressões. Se não houvesse forças internas que, de tempos a tempos, geram montanhas, sejam elas de que tipo forem, a superfície dos continentes seria tão plana quanto a das águas em repouso.
É curioso lembrar que, no século X, os membros de uma fraternidade de filósofos
ismaelitas, conhecida por “Irmãos da Pureza”, (Ikhwan al-Safa, em árabe), que
se admite ter estado sediada em Bassorá, no Iraque, escreveram numa
enciclopédia que nos legaram “os continentes, uma vez arrasados pela erosão,
ficam ao nível do mar”.
Desde
sempre, filósofos, geógrafos, naturalistas e geólogos se depararam com esta
realidade do relevo em todas as latitudes da Terra, que é o confronto entre as
planícies e as montanhas. Portugal não foge a esta dualidade. À planície
alentejana opõe-se a orografia bem mais acidentada do centro e norte do
território.
Na origem, o termo planície, que nos chegou vindo do latim “planitie”,
significa superfície plana. Como vocábulo do léxico geográfico, esta mesma
palavra passou a referir uma extensão maior ou menor de terreno aplanado, de
notada horizontalidade e, na maioria dos casos, a muito baixa altitude, onde a
sedimentação supera largamente a erosão. Os geógrafos distinguem planícies
fluviais e planícies costeiras ou litorais.
As planícies fluviais formam-se, as mais das vezes, na zona vestibular dos
rios, ou seja, nos troços mais próximos da foz, propícios ao desenvolvimento de
meandros divagantes. São limitadas por aclives (vertentes a subir), ou seja,
estão rebaixadas relativamente aos terrenos envolventes. São exemplos de
planícies fluviais a lezíria (do árabe al jazīrâ) e os mouchões do Tejo, os
campos do Mondego, do Sado, do Caia e do Sorraia e os sapais de Corroios e de
Castro Marim. Favoráveis à sedimentação fluvial, comportam muitas vezes corpos
de águas paradas, como pântanos (ou pauis) e braços mortos de meandros
abandonados.
As planícies litorais ou costeiras têm por limites de um lado, o mar e, do
outro, um aclive, muitas das vezes, uma antiga falésia ou arriba (arriba
fóssil). São exemplos de superfícies litorais a que se estende para sul de Ovar
até a Serra da Boa Viagem, muitas vezes referida por gândara, a que se prolonga
entre esta Serra e a Nazaré, a alentejana, entre a foz do Sado e Sines, e a
campina entre Faro e Olhão. Propícias à sedimentação marinha e/ou dunar
arenosa, com elas se relacionam restingas, ilhas-barreiras, lagunas (rias) como
as de Aveiro e de Faro-Olhão e lagoas como as de Fermentelos (Pateira), Óbidos,
Melides e Santo André.
Ao contrário das planícies, os planaltos, como o nome indica, são superfícies
aplanadas em altitude (convencionalmente, acima dos 300 m) limitados por
vertentes que descem para terrenos a cotas inferiores. Ao contrário das
planícies, os planaltos são, sobretudo, sede de erosão. Entre nós, é frequente
falar-se dos planaltos transmontanos, do planalto da Guarda e, até, do planalto
da Torre, no cimo da Serra da Estrela.
O estudo
das superfícies de aplanação é um dos temas mais explorados na dialética entre
geógrafos e, com a evolução da geografia física para a geomorfologia, entre
geomorfólogos.
Nesta troca de ideias há que registar os modelos concebidos por William Morris
Davis (1850-1934), Walther Penk (1888-1923), Julius Büdel (1903-1983) e Lester
Charles King (1907-1989). Em 2005, na monumental obra em três volumes, GEOGRAFIA
DE PORTUGAL, editada pelo Círculo de Leitores e dirigida pelo Prof. Carlos
Alberto Medeiros, o nosso saudoso colega (e meu ex-aluno), António Brum
Ferreira foi o autor do primeiro volume “ O Ambiente Físico”, onde, em palavras
simples mas rigorosas sintetiza as ideias destes quatro autores.
No artigo “The Geographical Cycle” que ficou célebre na geografia de finais do
século XIX, W. M. Davis, professor da Universidade de Harvard, divulgou o
conceito de “peneplaine” (peneplanície na versão portuguesa) como um tipo de
aplanação inacabada, a relativamente baixa altitude, fruto de um longuíssimo
desgaste por parte da erosão fluvial. O elemento de origem latina “pene” que
escolheu para antepor à palavra “planície”, significa “quase”, pelo que foi e
continua a ser, sobretudo, no sentido de “quase planície” que este vocábulo
entrou no léxico geográfico e geomorfológico. Largamente divulgado por
prestigiados geógrafos franceses, como Emmanuel de Martonne (1873-1955), Henri
Baulig (1877-1962) e Pierre Birot (1908-1984), o conceito de peneplanície
estendeu-se aos geógrafos portugueses, então ainda francófonos na sua maioria.
Conhecido como o “pai da geografia americana”, Davis partiu da convicção de
que, a períodos relativamente curtos de elevação do relevo, se seguiam outros
imensamente longos, de grande estabilidade, favoráveis à erosão. Por outro
lado, tendo centrado o essencial do seu trabalho de campo nas regiões sob clima
temperado-húmido, o modelo de aplanação que concebeu e divulgou assenta,
fundamentalmente, na erosão realizada pelos cursos de água. Neste processo, que
designou por “erosão normal”, Davis escolheu o adjectivo “normal” no propósito
de poder usar este tipo de erosão como norma ou padrão de comparação com os de
outros ambientes climáticos.
Na concepção de Davis, a peneplanície, que interpretou como resultante da
erosão de uma montanha nos parâmetros em que a definiu, pode ser elevada por
subida do continente (epirogénese) ou por descida do nível do mar, dando início
a novo e idêntico processo erosivo, numa repetição a que deu o nome de ciclo de
erosão.
Um
argumento contra a prolongada imobilidade tectónica pressuposta no modelo
davisiano foi apresentado, vinte e cinco anos depois, pelo jovem geomorfólogo
austríaco, Walther Penck (1888-1923), no livro que nos deixou, “Die
Morphologische Analyse”, editado postumamente em 1924. Porém, o modelo de Davis
só sofreu contestação, em 1953, quando este livro foi traduzido para inglês,
sob o título “Morphological Analysis of Landforms”. Influenciado pelas observações
geomorfológicas a que procedera na região da Floresta Negra, onde um conjunto
de superfícies aplanadas se escalona em degraus (Piedmonttreppen) nos flancos
da montanha, Penck argumenta, neste seu livro, que o processo de erosão do
relevo ocorre simultaneamente de forma gradual e contínua com o de elevação do
mesmo relevo.
Pouco mais
de três décadas depois, na Alemanha, Julius Büdel (1903-1983) revelava um outro
processo conducente à origem de uma superfície de aplanação. Experimentado na
geomorfologia de regiões tropicais do tipo savana quente, com uma estação
húmida acentuada, propícia à formação do rególito, ou seja, de uma capa de
meteorização das rochas do substrato, este geomorfólogo defendia, na sua obra
"Zeitschrift für Geomorphologie", publicada em 1957, a ideia da
existência de duas superfícies com realidade no terreno: a superfície
topográfica, em contacto directo com a atmosfera, ou seja, a que suporta a
paisagem, sujeira a erosão pelas águas de escorrência e fluviais; e a
superfície basal, entre o rególito e a rocha sã, tanto mais profunda, quanto
maior fosse a espessura do rególito.
Büdel defendia que, quando a humidade prevalecesse relativamente à secura, a
meteorização é mais veloz do que a erosão. Se o clima regional evoluir no sentido
da aridez, a erosão torna-se mais intensa do que a meteorização das rochas,
podendo, no limite, pôr a descoberto a dita superfície basal que, assim, se
transforma numa superfície de aplanação.
Um outro
modelo contraposto à peneplanície e, talvez, o que mais movimentou a comunidade
de geógrafos e geomorfólogos foi concebido e divulgado pelo geomorfólogo
sul-africano Lester Charles King (1907-1989), na obra "The Morphology of
the Earth", publicada em 1962. Inglês de nascimento, este professor da
Universidade do Natal, procurou explicar aplanações recentes e antigas por uma
outra via radicalmente diferente da de Davis, tendo baseado o seu modelo na
evolução do relevo que lhe foi dado observar na regiões subáridas. Ao percorrer
estas regiões, este que foi um dos mais influentes geomorfólogos do século XX,
notou que as planuras destas regiões terminam, abruptamente, contra escarpados
íngremes. Verificou que a superfície do terreno na base deste escarpados, a que
deu o nome de “pediment”, (pedimento, na versão portuguesa) se apresentava
minimamente inclinada, talhada pela escorrência de águas selvagens) carregadas
de detritos. Para o autor, é o desenvolvimento destas superfícies que conduz à
pediplanície, “pediplain”, na versão inglesa.
Na concepção de King, a pediaplanação, ou seja, o desenvolvimento da
pediplanície vai alastrando em detrimento do relevo que, consequentemente, vai
recuando, deixando, por vezes, testemunhos isolados, controlados pela estrutura
geológica do terreno (dobras, falhas e outras). Aos ditos testemunhos, isolados
como se fossem ilhas, salientes da pediplanície, o geógrafo germânico Wilhelm
Bornhardt (1864-1946) deu o nome de “Inselberg” (do alemão “Insel”, que
significa ilha, e “Berg”, que quer dizer monte) termo que, à letra, significa monte-ilha.
Embora algumas das suas ideias e interpretações, como, aliás, todas as outras,
sejam questionáveis, King estimulou a comunidade dos geógrafos e geomorfólogos
a repensar e rever criticamente os agentes e os mecanismos que conduziram e
conduzem à aplanação do relevo.
Etiquetas: GC
1 Comments:
Transmitir conhecimentos, de forma a tornar assuntos áridos em assuntos que suscitam interesse é uma arte! Obrigada professor
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