29.4.16

SUPERFÍCIES DE APLANAÇÃO, UMA INEVITABILIDADE DO CAMPO GRAVÍTICO TERRESTRE

Planície alentejana com a Serra do Caldeirão no horizonte. 
Desenho de João Alveirinho Dias
Por A. M. Galopim de Carvalho
Do mesmo modo que tudo cai de cima para baixo por força da gravidade e uma vez que, no nosso planeta, existem agentes promotores de erosão, as montanhas tendem a ser arrasadas e os materiais resultantes dessa erosão acumulados nas depressões. Se não houvesse forças internas que, de tempos a tempos, geram montanhas, sejam elas de que tipo forem, a superfície dos continentes seria tão plana quanto a das águas em repouso.

É curioso lembrar que, no século X, os membros de uma fraternidade de filósofos ismaelitas, conhecida por “Irmãos da Pureza”, (Ikhwan al-Safa, em árabe), que se admite ter estado sediada em Bassorá, no Iraque, escreveram numa enciclopédia que nos legaram “os continentes, uma vez arrasados pela erosão, ficam ao nível do mar”.
Desde sempre, filósofos, geógrafos, naturalistas e geólogos se depararam com esta realidade do relevo em todas as latitudes da Terra, que é o confronto entre as planícies e as montanhas. Portugal não foge a esta dualidade. À planície alentejana opõe-se a orografia bem mais acidentada do centro e norte do território.

Na origem, o termo planície, que nos chegou vindo do latim “planitie”, significa superfície plana. Como vocábulo do léxico geográfico, esta mesma palavra passou a referir uma extensão maior ou menor de terreno aplanado, de notada horizontalidade e, na maioria dos casos, a muito baixa altitude, onde a sedimentação supera largamente a erosão. Os geógrafos distinguem planícies fluviais e planícies costeiras ou litorais.
As planícies fluviais formam-se, as mais das vezes, na zona vestibular dos rios, ou seja, nos troços mais próximos da foz, propícios ao desenvolvimento de meandros divagantes. São limitadas por aclives (vertentes a subir), ou seja, estão rebaixadas relativamente aos terrenos envolventes. São exemplos de planícies fluviais a lezíria (do árabe al jazīrâ) e os mouchões do Tejo, os campos do Mondego, do Sado, do Caia e do Sorraia e os sapais de Corroios e de Castro Marim. Favoráveis à sedimentação fluvial, comportam muitas vezes corpos de águas paradas, como pântanos (ou pauis) e braços mortos de meandros abandonados.
As planícies litorais ou costeiras têm por limites de um lado, o mar e, do outro, um aclive, muitas das vezes, uma antiga falésia ou arriba (arriba fóssil). São exemplos de superfícies litorais a que se estende para sul de Ovar até a Serra da Boa Viagem, muitas vezes referida por gândara, a que se prolonga entre esta Serra e a Nazaré, a alentejana, entre a foz do Sado e Sines, e a campina entre Faro e Olhão. Propícias à sedimentação marinha e/ou dunar arenosa, com elas se relacionam restingas, ilhas-barreiras, lagunas (rias) como as de Aveiro e de Faro-Olhão e lagoas como as de Fermentelos (Pateira), Óbidos, Melides e Santo André.
Ao contrário das planícies, os planaltos, como o nome indica, são superfícies aplanadas em altitude (convencionalmente, acima dos 300 m) limitados por vertentes que descem para terrenos a cotas inferiores. Ao contrário das planícies, os planaltos são, sobretudo, sede de erosão. Entre nós, é frequente falar-se dos planaltos transmontanos, do planalto da Guarda e, até, do planalto da Torre, no cimo da Serra da Estrela.

O estudo das superfícies de aplanação é um dos temas mais explorados na dialética entre geógrafos e, com a evolução da geografia física para a geomorfologia, entre geomorfólogos.

Nesta troca de ideias há que registar os modelos concebidos por William Morris Davis (1850-1934), Walther Penk (1888-1923), Julius Büdel (1903-1983) e Lester Charles King (1907-1989). Em 2005, na monumental obra em três volumes, GEOGRAFIA DE PORTUGAL, editada pelo Círculo de Leitores e dirigida pelo Prof. Carlos Alberto Medeiros, o nosso saudoso colega (e meu ex-aluno), António Brum Ferreira foi o autor do primeiro volume “ O Ambiente Físico”, onde, em palavras simples mas rigorosas sintetiza as ideias destes quatro autores.
No artigo “The Geographical Cycle” que ficou célebre na geografia de finais do século XIX, W. M. Davis, professor da Universidade de Harvard, divulgou o conceito de “peneplaine” (peneplanície na versão portuguesa) como um tipo de aplanação inacabada, a relativamente baixa altitude, fruto de um longuíssimo desgaste por parte da erosão fluvial. O elemento de origem latina “pene” que escolheu para antepor à palavra “planície”, significa “quase”, pelo que foi e continua a ser, sobretudo, no sentido de “quase planície” que este vocábulo entrou no léxico geográfico e geomorfológico. Largamente divulgado por prestigiados geógrafos franceses, como Emmanuel de Martonne (1873-1955), Henri Baulig (1877-1962) e Pierre Birot (1908-1984), o conceito de peneplanície estendeu-se aos geógrafos portugueses, então ainda francófonos na sua maioria.
Conhecido como o “pai da geografia americana”, Davis partiu da convicção de que, a períodos relativamente curtos de elevação do relevo, se seguiam outros imensamente longos, de grande estabilidade, favoráveis à erosão. Por outro lado, tendo centrado o essencial do seu trabalho de campo nas regiões sob clima temperado-húmido, o modelo de aplanação que concebeu e divulgou assenta, fundamentalmente, na erosão realizada pelos cursos de água. Neste processo, que designou por “erosão normal”, Davis escolheu o adjectivo “normal” no propósito de poder usar este tipo de erosão como norma ou padrão de comparação com os de outros ambientes climáticos. 
Na concepção de Davis, a peneplanície, que interpretou como resultante da erosão de uma montanha nos parâmetros em que a definiu, pode ser elevada por subida do continente (epirogénese) ou por descida do nível do mar, dando início a novo e idêntico processo erosivo, numa repetição a que deu o nome de ciclo de erosão.

Um argumento contra a prolongada imobilidade tectónica pressuposta no modelo davisiano foi apresentado, vinte e cinco anos depois, pelo jovem geomorfólogo austríaco, Walther Penck (1888-1923), no livro que nos deixou, “Die Morphologische Analyse”, editado postumamente em 1924. Porém, o modelo de Davis só sofreu contestação, em 1953, quando este livro foi traduzido para inglês, sob o título “Morphological Analysis of Landforms”. Influenciado pelas observações geomorfológicas a que procedera na região da Floresta Negra, onde um conjunto de superfícies aplanadas se escalona em degraus (Piedmonttreppen) nos flancos da montanha, Penck argumenta, neste seu livro, que o processo de erosão do relevo ocorre simultaneamente de forma gradual e contínua com o de elevação do mesmo relevo.
Pouco mais de três décadas depois, na Alemanha, Julius Büdel (1903-1983) revelava um outro processo conducente à origem de uma superfície de aplanação. Experimentado na geomorfologia de regiões tropicais do tipo savana quente, com uma estação húmida acentuada, propícia à formação do rególito, ou seja, de uma capa de meteorização das rochas do substrato, este geomorfólogo defendia, na sua obra "Zeitschrift für Geomorphologie", publicada em 1957, a ideia da existência de duas superfícies com realidade no terreno: a superfície topográfica, em contacto directo com a atmosfera, ou seja, a que suporta a paisagem, sujeira a erosão pelas águas de escorrência e fluviais; e a superfície basal, entre o rególito e a rocha sã, tanto mais profunda, quanto maior fosse a espessura do rególito. 

Büdel defendia que, quando a humidade prevalecesse relativamente à secura, a meteorização é mais veloz do que a erosão. Se o clima regional evoluir no sentido da aridez, a erosão torna-se mais intensa do que a meteorização das rochas, podendo, no limite, pôr a descoberto a dita superfície basal que, assim, se transforma numa superfície de aplanação.

Um outro modelo contraposto à peneplanície e, talvez, o que mais movimentou a comunidade de geógrafos e geomorfólogos foi concebido e divulgado pelo geomorfólogo sul-africano Lester Charles King (1907-1989), na obra "The Morphology of the Earth", publicada em 1962. Inglês de nascimento, este professor da Universidade do Natal, procurou explicar aplanações recentes e antigas por uma outra via radicalmente diferente da de Davis, tendo baseado o seu modelo na evolução do relevo que lhe foi dado observar na regiões subáridas. Ao percorrer estas regiões, este que foi um dos mais influentes geomorfólogos do século XX, notou que as planuras destas regiões terminam, abruptamente, contra escarpados íngremes. Verificou que a superfície do terreno na base deste escarpados, a que deu o nome de “pediment”, (pedimento, na versão portuguesa) se apresentava minimamente inclinada, talhada pela escorrência de águas selvagens) carregadas de detritos. Para o autor, é o desenvolvimento destas superfícies que conduz à pediplanície, “pediplain”, na versão inglesa. 

Na concepção de King, a pediaplanação, ou seja, o desenvolvimento da pediplanície vai alastrando em detrimento do relevo que, consequentemente, vai recuando, deixando, por vezes, testemunhos isolados, controlados pela estrutura geológica do terreno (dobras, falhas e outras). Aos ditos testemunhos, isolados como se fossem ilhas, salientes da pediplanície, o geógrafo germânico Wilhelm Bornhardt (1864-1946) deu o nome de “Inselberg” (do alemão “Insel”, que significa ilha, e “Berg”, que quer dizer monte) termo que, à letra, significa monte-ilha. 
Embora algumas das suas ideias e interpretações, como, aliás, todas as outras, sejam questionáveis, King estimulou a comunidade dos geógrafos e geomorfólogos a repensar e rever criticamente os agentes e os mecanismos que conduziram e conduzem à aplanação do relevo.

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1 Comments:

Blogger Ilha da lua said...

Transmitir conhecimentos, de forma a tornar assuntos áridos em assuntos que suscitam interesse é uma arte! Obrigada professor

4 de maio de 2016 às 23:00  

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