Calamidade pública
Por Joaquim Letria
O nosso Portugal de hoje lembra-me um vizinho que tive em Lisboa. Esse senhor, de quem também eu gostava muito, era a figura máxima do meu prédio. Não havia alguém que não gostasse dele. Nunca percebi se gostavam dele por ser muito bem educado e simpático, se por causa da mulher lhe ter fugido com um diplomata grego, deixando-o com três filhos por criar e um par de cornos que não havia cão nem gato que não comentasse.
A este meu vizinho só sucediam desgraças. Depois da mulher o ter abandonado veio a falência. O sócio fez um desfalque digno desse nome na empresa de representações de ambos, onde andara a roubar durante anos, e fugiu para o Brasil com uma professora de liceu.
Os filhos também não ajudaram. O mais velho, que era o orgulho do pai por ser muito bom aluno de economia, começou a derrapar e acabou conhecido pela alcunha de “Didi Maluca”. A menina, carinhosa e simpática, foi estudar para o Porto, arranjou um engenheiro e nunca mais quis saber do curso nem do pai. O mais novo, que queria ser baterista, foi viver com a mãe para a Grécia onde não tinha de trabalhar e o padrasto lhe oferecia muitos presentes.
Foi nesta fase de desencanto, por se sentir abandonado pelos filhos, que o meu vizinho colapsou. O tio, de quem falava muito por ser riquíssimo e ele ser seu único herdeiro, casou-se com uma apresentadora de TV 30 anos mais jovem. O solar brasonado no Norte, do qual mostrava sempre muitas fotografias, ardeu por causas não apuradas e sem seguro . E até o DS 21 de volante branco e estofos de couro caiu na Boca do Inferno enquanto comia marisco no Guincho com um cliente.
Tomou então a decisão drástica de se suicidar. A bala de 6,75 da pistola que guardava no cofre atravessou-lhe a cabeça e estoirou o Columbano pendurado na parede, deixando a obra que se orgulhava de possuir sem possibilidade de restauro. Um neurocirurgião operou-o com sucesso, dando-lhe alta sem mexer o braço e a arrastar a perna esquerda, com a boca ao lado e crivado de dívidas.
Quando puseram o seu andar à venda eu soube que ele fizera uma tentativa desesperada de o considerarem zona de “calamidade pública” mas a pretensão foi negada. Morreu pouco tempo depois, num lar de idosos onde passava o dia a jogar dominó.
Portugal hoje faz-me lembrar esta figura trágica da minha juventude, devastado por si próprio, desunido, corrompido, quebrado, democrata “dominus vobisco”.
Mas não se pode dizer mal! Não parece bem nem é politicamente correcto. A bem da Nação, assim foi decretado a tantos de tal.
Publicado no Mundo Digital
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3 Comments:
Acusam-me de pessimista por também ver Portugal (agora chamo-lhe «eucaliptugal», com significado múltiplo) por este prisma e com estas cores.
Só não sei (faltam-me conhecimentos de História) se Portugal não terá sido sempre assim, mais coisa menos coisa.
E pior: chego a pensar que é por ser intrinsecamente assim que nunca morreu nem escapou da iminência da morte, razão por que admito que seja uma entidade política eterna, só destrutível um dia destes quando a Natureza se cansar de vez do «Homo sapiens».
Queiram os santinhos (que sempre protegeram Portugal, que não a imensa maioria dos portugueses de todos os tempos, facto que os torna imensamente devotos) que não seja assim.
Portugal faz-me lembrar,um adolescente atraente, que se deixa deslumbrar facilmente por todas as oportunidades que se lhe apresentam,mas que não consegue decidir qual o caminho a seguir
A bem do Regime.
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