Grande Angular - Bom dia, Governo novo!
Por António Barreto
O novo governo merece votos de boa sorte. Se as coisas correrem bem para ele, é provável que também corram bem para nós. Nem sempre é assim, já vimos governos fazer o que deve ser feito e ninguém lhes agradecer. E também já vimos os que não fizeram o que deviam ter feito e, mesmo assim, foram recompensados com votos ou benevolência. Os povos são ingratos e os governos também.
O governo velho, o que agora acaba, orientou-se, com sorte e habilidade, por princípios simples: a capacidade de negociação, a estabilidade e a duração. Conseguiu. Também adoptou ideias e valores de enorme simplicidade: ter as contas certas, manter uma firme política de contenção financeira, devolver e distribuir rendimentos. Deu resultados. Achou por bem seguir a onda e os ventos europeus, sem invenções nem projectos esquisitos. Teve êxito.
Para o governo novo, quase igual ao velho, não se sabe ainda o que António Costa nos reserva. Não é possível continuar a tratar só da duração e da estabilidade, pois nada será como dantes. É pena, aliás, que o Primeiro-ministro não tenha querido estabelecer uma qualquer base sólida (acordo, contrato, aliança ou coligação…) para o governo e a legislatura. Teria assim podido ocupar-se mais do conteúdo e dos objectivos e menos das habilidades e dos adjectivos. É possível que, no discurso de posse, na primeira ida ao Parlamento e noutra qualquer oportunidade, ele nos revele finalmente o sentido principal que pretende dar ao seu governo e ao seu mandato. Talvez tenhamos, como é costume, uma enumeração de prioridades, às dúzias, incapazes de definir uma ideia ou um destino. Mas não parece provável que apenas deseje repetir o primeiro acto, devolver, ceder e negociar, com um único objectivo, o de durar. Na verdade, os seus adversários e os seus amigos aprenderam, à sua custa, que esse estilo lhes é desfavorável.
Com a Catalunha à vista e o Reino Unido fora dela, com as ameaças nacionalistas conhecidas, com a crise da imigração sem sinais de abrandamento e com a altíssima tensão no Próximo Oriente, era excelente que o governo novo, mesmo com Primeiro-ministro velho, consiga ou queira redefinir um caminho. Não se trata de metafísica romântica, mas tão só de uma exigência clássica para a melhor política: dar um sentido ao governo.
Todos sabem que as necessidades comandam boa parte da política. Assim é e assim será. A dívida continua grande, melhora muito devagar. O investimento está baixo, mas conheceu algum progresso. O crescimento está a melhorar. O défice parece estar em boa situação. Seria bom que o governo novo reforce estas políticas, mas mantê-las já seria avisado. O governo sabe que tem de tratar do poder excessivo das potências e dos interesses que adquiriram grande parte da economia portuguesa. Como não é novidade ser inevitável alterar as leis laborais a fim de facilitar o crescimento. O governo sabe isso, mas gostaria de adiar. Ou esperar que a simpatia internacional pela estabilidade e pelas contas certas fosse suficiente e não exigisse reformas dolorosas. Mas o governo sabe que a tal não escapará.
Ainda no domínio das evidências, está a necessidade de olhar para os serviços públicos essenciais, mais ainda, de encontrar recursos enormes para acudir a uma situação de quase ruptura. O atendimento público e as relações entre cidadãos e Administração estão no ponto mais baixo de há muitos anos. O Serviço Nacional de Saúde, que o PS acusa de ter sido destruído pela direita e pela troika, mas que na verdade foi também miseravelmente mal gerido pela esquerda, está a precisar de cuidado intensivo.
Nada disto faz o essencial. Nada disto é muito mais difícil do que a gestão normal da nossa vida colectiva, que nunca é fácil e que tem sempre dificuldades. Acima de tudo, em cada momento, está o que faz a decência na vida e nas instituições de um país. Nas nossas condições de vida e nas actuais circunstâncias, a confiança nas instituições, o respeito da Administração pelos cidadãos e a protecção essencial dos nossos direitos e liberdades, constituem o sentido principal da acção pública das autoridades. E para que isso seja possível, uma palavra: Justiça!
O governo tem agora o dever de olhar com redobrada atenção, com vontade superior e com energia renovada, para a justiça, com especial relevo para os aspectos que mais se evidenciaram negativamente nos últimos tempos. As regras processuais, fonte de desigualdade e despotismo. A chicana burocrática que destrói a eficiência e alimenta a desigualdade. As garantias excessivas, factor de injustiça e paralisia. As relações entre magistratura judicial e ministério público, sem falar nas polícias, que se têm transformado em obstáculo sério à eficiência.
É imperdoável que António Costa continue a afirmar, com evidente cinismo, que “à política o que é da política, à justiça o que é da justiça”. Quando algo está errado ou desempenha mal a suas funções, o tema transforma-se em política. De que se deve ocupar a política se não é justamente disso mesmo, do que está errado? Do que sofrem pessoas e cidadãos sem esperança nas instituições e no seu funcionamento normal? António Costa tem diante de si o imperativo moral e político de fazer, pela política e com o respeito pelas leis essenciais do seu país, o que a justiça não sabe, não quer fazer ou não consegue ser: justa, pronta e eficiente. Não se trata de fazer com que a política se substitua à justiça, erro absoluto. Mas trata-se com certeza de criar condições legais, institucionais, processuais e materiais para que a justiça funcione e cumpra os seus deveres. Apesar de muitas outras carências (sociais, económicas, culturais…) o que mais falta faz à democracia portuguesa é uma justiça eficiente, pronta e justa. Uma justiça que não dê razão aos que pensam que existe uma justiça especial para os poderosos, os afortunados, os amigos e os políticos. Uma justiça que seja o antídoto essencial contra a corrupção, em todas as suas formas, das famílias aos partidos, das empresas aos serviços públicos, à volta do núcleo central, o do poder político venal e cúpido. Este tema é eminentemente político, legal e constitucional. E o governo é, com o Parlamento, protagonista privilegiado e responsável maior.
Público, 20 de Outubro de 2019
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