Ao António Queirós, um amigo de quem não me despedi (Crónica – 5651 carateres)
Por C. B. Esperança
António, tu serias o herói de um romance ou, talvez, o protagonista de uma tragédia, do tempo da fome, da guerra e da repressão, o exemplo de uma época em que eram poucos os que ao medo opunham a coragem e a determinação que carateriza homens de eleição.
Por que raio havia de lembrar-te hoje, e agora? Talvez porque eram então, por razões diferentes, tempos de medo e ansiedade, como os que ora vivemos. Tenho contigo uma dívida de gratidão que nunca saldei em vida. Não te dediquei uma crónica em tantas que escrevi e tenho de ti algumas das memórias mais afetuosas e das mais divertidas. Ignoro as que me ocorrerão ao correr das teclas, nesta tarde de reclusão e medo da COVID- 19.
Eras o mais velho de quatro irmãos, todos de inteligência excecional e elevados padrões éticos, democratas e filantropos, que nunca esqueceram as raízes pobres de S. Pedro do Rio Seco, de onde viestes com os pais para a Guarda, a fazerem pela vida, a procurar a sobrevivência, com aquela taberna em frente aos Correios, de vinho e petiscos.
De todos, foste tu o mais sofrido, o que passou pela vida com mais escolhos. Conheci-te cabo-miliciano no quartel da Guarda, com o 2.º Ano do Liceu e a estudar à noite.
Lembro-me, como se fosse hoje, num dos primeiros meses de 1961, quando já cursavas o 1.º ano da Escola do Magistério, um ano depois do meu, e me disseste que tinhas sido mobilizado para a Guiné. Apesar da intensa propaganda fascista, nós sabíamos que era uma guerra perdida, mas apostava que, no regresso, dirias que a guerra estava ganha. Afirmaste que não mentirias, como se eu ignorasse a têmpera do 2.º sargento miliciano roubado à disponibilidade na Escola do Magistério!
Já não concluíste o 1.º ano por cujo reinício havias de aguardar no regresso. Vieste mais velho e triste. No abraço do reencontro, como se nos tivéssemos despedido na véspera, recordaste-me a despedida: ‘Disse que contaria o que se passou, e aqui estou, a dizer-te que a minha Companhia ganhou terreno ao PAIGC. Havia uma cerca de arame farpado quando chegámos, ficaram três, mais duas, ambas por fora da inicial’. Foi com humor sombrio que confirmaste o que sabíamos e a propaganda e a censura ocultavam.
Como terá sido penoso o reinício na Escola do Magistério! Quando regressei da guerra colonial fui encontrar-te em Lisboa, a dar aulas e a frequentar a Universidade. Éramos vários professores primários a fazer pela vida, o Moisés, o Agostinho, o Fernando Pires e outros. Nas primeiras férias foi contigo que passei uns dias em Madrid, a ver museus e a percorrer Espanha, à boleia e de comboio. ‘Perdi-te’ em Sevilha e voltei antes de ti, de avião, numa das maldades que gostávamos de fazer um ao outro, para nos encontrarmos de novo no Café Nova Yorque.
Do que foste, das vitórias que conseguiste, guardo o respeito e a admiração pelo amigo cuja morte me abalou. É das derrotas que vou escrever, são a parte que nos divertiria se fosses vivo e tempo houvesse para as recordarmos num jantar cozinhado por ti.
Poucos se conheceram tão bem como nós. Aquela viagem memorável que fizemos por Itália e Jugoslávia, com a inesquecível travessia do Mediterrâneo, não o mar que é hoje cemitério de desesperados, aquele que passámos de Barcelona a Génova, com o BMW do Correia Neves a bordo, o carro a que tinhas ajudado a mudar a roda no dia em que o comprou, quando um brasileiro vos avisou de que o pneu estava murcho, i.e., furado.
Bastava a condução do Correia Neves para nos aterrar, conduzia depressa e mal, e tinha uma roda enroscada ao contrário, pela vossa impaciência e atrevimento, pela demora da oficina. Percorremos milhares de km, até lhe chamarem assassino numa oficina de Barcelona, no regresso, por causa da roda, com porcas moídas e à beira de soltar-se. Eu já vos tinha abandonado em Milão, regressado de avião para passar uma semana com os meus pais. Dos quatro dessa viagem, resto eu e a memória que me acompanha.
Não saíste melhor condutor que o Correia Neves, o advogado a quem as companhias de seguro não cobriam ‘todos os riscos’, tantos eram os acidentes. Já licenciado, compraste um velho VW, que as magras poupanças permitiram. Na viagem inaugural, na curva da Estrada Militar para a Caçada do Carriche, não conseguiste descurvar e amolgaste o carocha. Suportaste o gozo dos amigos, doía-te o preço do conserto. Fizeste economias para pagar os estragos e, quando o recebeste, desamolgado e a luzir, voltaste a convidar o Moisés para repetir a viagem inaugural. Já nos tinhas dito, e ias a repetir ao Moisés, que parecia impossível, a uma velocidade tão baixa, como agora – dizias –, a 10 km/h, como foi possível despistar-me e, zás, repetiste o acidente. Não reincidiste a conduzir. Respeitámos o desespero e a muda frustração e, à tua frente, nunca zombámos.
Ah! A história da Bárbara, aquela alemã que foi selecionada para locutor e recusada por ser mulher. Não gostavas dela. Não lhe perdoavas que fosse companheira do teu irmão Luís. Tinha voz masculina e gostava de bagaço. Quando o empregado trazia o carioca de limão e o café e bagaço e trocava os destinatários, era rápida a substituir o carioca do Luís pelo café e bagaço que lhe eram destinados.
Um dia, já tarde, os dois chegaram a tua casa, espécie de pensão, onde tinham o quarto, como outros amigos, para poderes pagar a renda, essa casa onde o Correia Neves tirava um pendente do candeeiro das escadas, cada vez que ali íamos jantar, até os extinguir. Quando se deitaram, pegaste no martelo de madeira e às 4 horas da manhã resolveste reparar à martelada o autoclismo avariado. O Luís, que já tinha casa, vestiu-se e foi com a Bárbara, ressentido com o irmão mais velho. E tu lá voltaste ao sono, a dormir sobre o lado da orelha com que ouvias, não fosse o casal ripostar com mais ruído.
Dias mais tarde, quando dormias, o Luís resolveu, a horas impróprias, chegar com um balde de tinta e uma trincha larga para pintar o quarto e envenenar o ar da casa com o odor intolerável daquela tinta. Foi a vingança servida fria, de madrugada.
Tivemos uma vida intensa de forte amizade e cumplicidade política, o afeto que resiste ao tempo e me faz escrever-te. Tu não morreste, continuas vivo na memória e no afeto dos que restamos dos tempos exaltantes em que desafiávamos a polícia de choque em manifestações contra a guerra colonial e reuniões onde sonhávamos com a democracia.
Resta uma lágrima teimosa saída do mar de recordações da tertúlia do Café Nova York, saudades de tantos que partiram: Aura, Tilinha, Xupa, Judite, Correia Neves, Barbas, Maria Antónia, Zé Dalmeida, João Isidro, Moradas Ferreira, Pinto Martins e Zé, Teresa e João Ascensão, Fernando Carvalheira e outros que ora não recordo e te acompanham na saudade que me consome, nesta memória teimosa que me persegue.
Coimbra, 07/04/2020
Ponte Europa / SorumbáticoEtiquetas: CBE
3 Comments:
Confesso, passei por vários quartéis cá e lá e nunca me apercebi que algum militar contestasse ordens.Do que tenho conhecimento, quer em Angola quer em Moçambique, eram atravessadas durante milhares de Kms e em segurança.O flagelo dos retornados aconteceram na vigência de governos nativos.
Não é para contrariar V.Exª.Talvez os meus olhos não alcançassem!
Não nego que após, cá, fui dentro.
Cumps
OPJJ:
Lamento que o arrecadassem se não esteve comprometido em atos de terrorismo. Não é essa a ademocracia que defendo.
Pois eu passei por vários quartéis, cá e lá, e eu mesmo contestei várias ordens. Cá e lá. E não me arrependo. Se fosse hoje, faria o mesmo.
Em Angola, entre 1961 e 1974, bastava chegar ao Caxito, a menos de cem quilómetros a norte de Luanda, para não se poderem percorrer os tais "milhares de km em segurança". Do Caxito para norte só se podia viajar sob escolta militar e com autorização expressa do quartel-general em Luanda. Quem quisesse viajar de Luanda para Carmona(!) (atual Uíge), por exemplo, sem necessitar de autorização militar, tinha que dar a volta por Salazar(!) (atual Ndalatando), percorrendo mais 200 ou 300 km de distância. Os próprios nomes destas cidades, aliás, são "dignos" representantes do mais mesquinho e ridículo colonialismo.
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