Grande Angular - Justo furor
Por António Barreto
Algures para os lados de Peniche, uma menina, Valentina, foi assassinada. Tudo leva a crer que os autores tenham sido o seu pai e madrasta. Com irmãos espectadores. Com pancadaria, sofrimento, tortura e encenação escabrosa. Não falta quem reclame justiça privada para castigar aquelas bestas. Nem quem considere que é o momento chegado para restaurar a pena de morte para certos casos, como o assassinato de crianças. Há quem prefira a prisão perpétua. É sempre assim: perante um excesso de violência e de crueldade, logo aparece o excesso de vingança. Ódio com ódio se paga. É o pior que se pode fazer. Basta que se aplique a lei actual e que se proíba a redução. Poder-se-á aumentar a duração da pena? Talvez. Tudo o resto, prisão perpétua, pena de morte e justiça por mãos próprias, é do domínio da vingança, da raiva e não da justiça.
Há um justo furor, uma revolta contra a violência e a maldade de um adulto, de um pai, de uma mãe ou de um marido, que chegam a este ponto de desumanidade. Fúria contra os que vieram primeiro dizer que se tratava de bons vizinhos, para depois os quererem linchar. Fúria também contra os serviços de protecção de menores e contra os que deviam ter responsabilidades. Fala-se de crianças sinalizadas, mas esquecidas. Diz-se que já havia ficheiros constituídos. Que havia…
Sinalizados assassinados não faltam. Já não é o primeiro caso. Nem o segundo. Ora crianças. Ora velhos. Ora doentes. Ora mulheres. Sinalizados assassinos também não faltam. À solta. O Estado é só incompetente? Burocrático? Não tem leis que cheguem? Não tem pessoal? Não tem equipamentos? Será que há problemas de carreira? Tudo parece ser possível. Mas uma coisa é certa: num país como o nosso onde é tão fácil pedir ao Estado dinheiros e regalias, empregos e benesses, há receio de pedir ao Estado que proteja as crianças, as mulheres, os doentes e os velhos.
Estamos mais uma vez diante de dilemas. Neste caso, os do papel do Estado e dos serviços de protecção. Pode o Estado retirar membros de uma família para os proteger? Pode retirar crianças aos pais? Tem o dever de esconder mulheres? Pode guardar idosos? Não estamos mais uma vez a pensar que o Estado resolve, que o Estado é justo, que o Estado é ama, padrinho e mãe?
O que tem piores consequências? Meter o Estado dentro de casa? Trazer para dentro das famílias as leis, os assistentes sociais, os serviços de protecção, os juízes, os psicólogos e a polícia, retirar crianças e jovens menores aos pais, colocá-los em instituições, violar as tradições familiares, fazer tábua rasa de velhos hábitos, ignorar que dentro de casa os pais são os reis, mas tentar salvar a vida ou a integridade física de crianças? Ou deixar as famílias resolver os seus problemas, permitir que os conflitos se tratem dentro de quatro paredes, não violar a intimidade e não contribuir para que se destrua ainda mais a família e o seu meio de cultura, afecto e cuidado? E se a intervenção do Estado foi excessiva e não se justificava? E se a protecção do Estado foi mal calculada e não chegou a horas? O que é mais grave? Educar crianças em meio institucional, dando o flanco aos abusos conhecidos e às organizações de exploração sexual e laboral? Ou deixar educar crianças em ambientes violentos, disfuncionais e perigosos, mas familiares?
Verdade é que há qualquer coisa que não está certa com as instituições de protecção às crianças e com serviços que devem protecção aos fracos, aos idosos, aos deficientes e aos internados em lares. Ou aos hóspedes temporários de hostels de imigrantes. Há qualquer coisa errada com as crianças “sinalizadas” e que acabam por ser assassinadas ou abusadas. Ou com as mulheres “sinalizadas” e que os maridos matam ou sovam. Ou com os velhos “sinalizados” e que os bandidos ou os presumíveis herdeiros espancam e roubam. Ou com os candidatos a refugiados que conseguem entrar no país, são “sinalizados” e depositados aos cinco e aos dez por quarto em pousadas geridas por negreiros, com o silêncio ou a cumplicidade de serviços públicos.
Veja-se o que se tem passado com os lares no decurso da presente pandemia. Velhos quase a monte, residências sobrelotadas, taxas de contágio absurdas e contaminados às dúzias. Onde está o Estado? Onde estão os serviços de protecção? Será que se trata de mais uma discussão ideológica sobre o papel do Estado? Será que se pensa que não se pode retirar crianças à família, porque a família é sagrada? Porque os pais e as mães naturais são sagrados? Será que se acredita sempre mais na palavra do pai porque é pai, da mãe porque é mãe? Mesmo quando são bêbedos, bandidos e criminosos? O Estado tem receio da Igreja que considera sagrada a família? O Estado entende que só em última instancia é que se pode e deve intervir, quando é certo que a última instancia é quase sempre tarde de mais. Quantas vezes se ouve dizer que a criança estava sinalizada, que o velho estava identificado, que a doente estava referenciada e que a mulher estava registada? E quantas vezes se ouve dizer que estes todos, mortos, estavam sinalizados?
Os números são cruéis. Nas duas últimas décadas, pelo menos trinta crianças assassinadas. Milhares de mulheres batidas e violadas em casa e no espaço público. Trinta mulheres assassinadas por ano. Centenas de velhos feridos ou mortos em casa. Os serviços de protecção, as polícias, os magistrados, os assistentes sociais e as autarquias estão mal preparados para prevenir. Provavelmente mal equipados. Seguramente sem meios. Mas sobretudo mal formados, parece. Na verdade, a ideologia da família, à luz da lei, da Igreja e dos costumes, faz com que se deixem os mais fracos abandonados. A família é capaz de tudo, do melhor e do pior. Mas é sabido que a maior parte dos crimes contra as crianças, os velhos e as mulheres ocorrem em “ambiente familiar”. E que a grande maioria dos crimes de abuso sexual têm igualmente a família como cenário e decoração.
O que é preciso de crueldade e de falta de humanidade, para espancar, matar e esconder uma criança de nove anos? O que é preciso de barbaridade para deixar os velhos literalmente amontoados a morrer, sem dignidade, sem serviços de inspecção e sem protecção da autarquia, do Estado ou seja de quem for? O que é preciso de selvajaria para espancar uma mulher, a sua mulher, a mãe dos seus filhos até a matar ou deixar desfigurada? O que é preciso de brutalidade e de grosseria para espancar ou matar os velhos indefesos e doentes! Estes crimes não têm desculpa, nem perdão. Nem atenuantes, sejam eles a miséria, a ignorância, as origens, o desespero, o álcool ou a droga…
Público, 17.5.2020
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