A Liberdade de expressão e os seus limites
Por C. B. Esperança
Quando se volatilizam direitos inalienáveis, não por regresso à ditadura ou por reflexo do estado de emergência, mas por medo do vírus que provocou a maior catástrofe das nossas vidas, urge refletir sobre os direitos que restam e a forma de readquirir os que suspendemos.
Apesar do equilíbrio precário entre deveres e direitos não podemos aceitar que o adágio popular “o meu direito termina onde começa o do outro” se converta em axioma. Basta a reprovação social para levar a constrangimentos inaceitáveis.
A moral é a ciência dos costumes e não um princípio universal para todas as épocas e culturas. As únicas restrições aceitáveis são as que o Código Penal de uma democracia impõe. Há divergências entre o crime e a moral. O adultério, v.g., é, na minha opinião, imoral, mas não é crime, e não esqueçamos que crimes como o incesto, a escravatura ou a tortura foram legais e considerados morais. Até a antropofagia! Ainda hoje, há países onde o adultério feminino e a homossexualidade são crimes graves, e a pedofilia, sob os auspícios do matrimónio, é legítima. Homens de 50 anos podem comprar e desposar crianças de 9 anos!
Se o facto de ferirmos preconceitos, convicções ou normas morais, individuais ou de grupo, limita o direito de expressão, privamo-nos dele. Sabemos que a defesa de uma ideologia fere quem perfilha a contrária, a defesa do clube desportivo ofende adeptos do clube adversário, a carne de porco e o álcool horrorizam mais de 20% da Humanidade, a defesa dos Direitos Humanos é abominada por metade dos homens, etc., etc.
Há um crime de sabor medieval que persiste no Código Penal português com pena ‘até um ano de prisão’, a blasfémia, sabendo-se que é blasfémia considerar os sacramentos placebo e inútil a liturgia, como já foi blasfémia defender o movimento de rotação da Terra ou a evolução das espécies. Felizmente, a jurisprudência portuguesa privilegia a liberdade de expressão.
Quem persuade islamitas a aceitarem direitos iguais para homens e mulheres ou hindus a abolirem a divisão em castas, a dessacralizar as vacas e a aceitarem que a viúva não se desonra por não se deixar cremar com o defunto ou por voltar a casar?
A homofobia, o racismo, a xenofobia e a misoginia já foram virtudes, hoje são crimes.
Quem explica aos judeus ultraortodoxos que o porco ou a beleza feminina não ofendem o deus deles e a muitos cristãos que os transplantes não são blasfemos?
Defendo o direito de injuriar o ateísmo, a social-democracia e a República, valores que perfilho, e o de satirizar as crenças, a monarquia e quaisquer outros modelos políticos, económicos ou religiosos. É o direito a combater ideias que defendo, não o de molestar pessoas que as perfilhem.
A defesa dos mortos, por mais criminosos que tivessem sido em vida, ou das tradições, por mais abjetas que sejam, é uma forma de condicionar o espírito crítico, de defender o imobilismo e castrar o livre-pensamento.
Sem direito ao contraditório, não há liberdade de expressão. Sem neutralidade do Estado, não há liberdade religiosa ou política.
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