10 de Junho de 2020 – Um discurso salvou o vazio da liturgia e do público
Por C. B. Esperança
Não sei se é a nossa mórbida vocação para exaltar a morte em vez da vida, os óbitos em vez dos nascimentos, preferindo os velórios às festas, ou a nostalgia do ‘nosso Ultramar infelizmente perdido’, sem qualquer reflexão sobre a guerra colonial e julgamento sobre os responsáveis, que esvazia de sentido as cerimónias festivas do calendário cívico.
O pudor democrático substituiu a designação fascista, “Dia de Camões, de Portugal e da Raça», por “Dia de Camões, de Portugal e das Comunidades Portuguesas”, e Marcelo dá um ar asseado ao dia que a memória coletiva ainda regista como a exaltação de 7481 mortos, 1852 amputados e 220 paraplégicos, as vítimas da guerra colonial, pelo risível almirante Américo Tomás.
Faltou-lhe designar, ao referir os que deram a vida pela Pátria, a quem se referia, se aos que foram mortos pela Pide, aos que tombaram inglória e inutilmente na guerra colonial ou aos que se finaram na aventura de Alcácer Quibir.
Foi, no entanto, justo na homenagem aos profissionais de saúde, assertivo na referência à pandemia e pedagógico quanto à crise em curso e às inevitáveis consequências.
Mas a surpresa, para quem desconhecia a inteligência, cultura e sensibilidade do orador convidado e temia a reincidência nas palavras sectárias e de propaganda do palrador de 2019, veio de Tolentino Mendonça, cardeal, português da diáspora, que no seu discurso inclusivo cerziu uma peça literária, imaculada na forma, rica na substância, à altura do cidadão humanista, democrata e cosmopolita.
Nas circunstâncias ditadas pela pandemia, na sobriedade que pontuou o dia dedicado às veneras, que satisfazem a vaidade dos escolhidos e se dependuram em pescoços adrede escolhidos, sobressaiu pela grandeza ética do humanista, pelo rigor da prosa do esteta e pelo cosmopolitismo do orador, o discurso límpido do intelectual.
Ficou uma bela mensagem: “o importante a salvaguardar é que, como comunidade, nos encontremos unidos em torno à atualização dos valores humanos essenciais e capazes de lutar por eles”. (…) “É que à visão do sonho concretizado não se chega sem atravessar uma dura experiência de crise, provocada por uma tempestade marítima que Camões sabiamente se empenha em descrever, com impressiva força plástica”, lembrando ainda que “no itinerário de um país, cada geração é chamada a viver tempos bons e maus, épocas de fortuna e infelizmente também de infortúnio, horas de calmaria e travessias borrascosas”.
Palavras sábias.
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