3.8.20

Grande Angular - Crime e preconceito

Por António Barreto
É provável que o assassino de Bruno Candé tenha agido também com preconceitos racistas. Se assim for, é de esperar que o tema seja esclarecido, que todos possam debater o assunto e que, se as houver, seja possível retirar lições para ver o que se pode fazer a fim de diminuir este género de crime.
Tenhamos consciência de que o crime também pode resultar de uma rixa de bairro, na qual se poderão eventualmente detectar várias responsabilidades, mesmo se as do assassino são sempre mil vezes mais culposas do que as da vítima. Entre a briga de vizinhos e o preconceito racial, há uma gama de variedades possíveis que expliquem o que se passou.
Além disso, é necessário ter em consideração que o crime com conotações raciais não é o pior, nem excepcional. O assassinato da mulher pelo marido ou de mulheres por predadores sexuais não é menos grave com atenuantes possíveis. O assassinato de crianças pelos pais, parentes ou “tarados” também não é de menor relevo. O assassinato de idosos por sadismo ou cupidez não é mais brando do que qualquer outro acima referido. O assassinato de trabalhadores nos seus postos de trabalho ou de comerciantes nas suas lojas (como se tem visto, com alguma frequência, com portugueses residentes na Venezuela, no Brasil, na África do Sul ou em Moçambique) não pode ser considerado como crime maior só pelo facto de as vítimas serem nossos compatriotas, nem menor por se tratar de brancos em terras de cores.
Todos estes crimes são detestáveis e deveriam ser castigados com severidade, sem considerações de comiseração de contexto, segundo as quais há tolerância por causa do estatuto social, da educação e das condições de habitação. Estes crimes, com ou sem preconceito, com ou sem condições de contexto, devem ser julgados por si. Sem atenuantes.
Os crimes raciais, categoria em que o de Moscavide poderia incluir-se, não devem ser considerados mais odiosos do que os outros. Nem o contrário. Há países e sociedades nos quais matar alguém da minoria (negro, asiático, cigano, hispano, branco, índio…) merece pouca atenção. Períodos houve na história europeia e americana, por exemplo, em que a morte de um branco às mãos de um negro ou de um cigano era crime horrendo, mas o assassinato de um negro ou de um cigano por brancos era já crime de menor importância, a merecer a análise das circunstancias atenuantes. Hoje, vivemos a situação inversa.
É certamente uma das perversões causadas pelo preconceito, aquela que sugere que a condição social ou racial do criminoso, assim como a da vítima, definem graus de culpa variáveis. Os crimes com evidentes implicações racistas (foram vários nos últimos anos em Portugal) suscitaram justificadas emoções, o que é compreensível. Mas não se pode aceitar que esses crimes sejam piores do que os outros, os que não têm implicações raciais e têm razões económicas, sociais, sexuais e religiosas. Como não é aceitável que a identidade das vítimas ou dos criminosos só seja revelada segundo as conveniências.
O que se passou recentemente, no mundo inteiro, com o assassinato de George Floyd por um polícia americano, comoveu a opinião pública e os movimentos de protesto espalharam-se em poucos dias a dezenas de países. Foi certamente um dos momentos em que o contágio por solidariedade se fez mais rapidamente e a mais locais do mundo. Em certo sentido, quem se preocupa com a decência nas relações humanas sentiu com emoção esta espécie de “onda de solidariedade” que atravessou o planeta.
O problema é que a solidariedade é muitas vezes selectiva: a naturalidade, a raça e a crença da vítima e do perpetrador influenciam o julgamento, a solidariedade e as consequências judiciais. Na história recente, é sabido que, na Europa e nos Estados Unidos, os crimes cometidos pelas polícias foram primeiro objecto de condescendência, para serem agora considerados com especial ferocidade. Enquanto os crimes cometidos por africanos começaram por ser muito severamente condenados, para agora serem “compreendidos”. Também faz parte da história recente o tratamento diferenciado dos ricos e dos pobres perante crimes patrimoniais: os roubos de umas dezenas de euros ou dólares, castigados com anos de prisão, contrastam com os assaltos de milhões transformados em perdas ou erros justificados.
A solidariedade e a indignação selectivas são hoje moeda corrente, mas representam sempre um grau muito baixo da moral colectiva.
Em Portugal, vivemos dias particularmente sensíveis. Por razões justificadas, movimentos de minorias têm vindo a organizar a sua actividade na defesa de interesses e na afirmação de cidadania. Por razões de oportunismo, alguns movimentos e forças políticas entenderam explorar todas as situações em que possam enxertar a indignação e a solidariedade selectivas. Assim é que se tenta exacerbar a questão do racismo em Portugal, em polémica quase sempre destituída de razão. 
O problema tem sentido. Mas a polémica é inútil e artificial. Há racismo em Portugal? Com certeza. Há racistas em Portugal? Evidentemente. Portugal é um país racista? Não, nem faz sentido tal observação. Na legislação, nos tribunais, nos sistemas de saúde e educação, em nenhum dispositivo legal há conteúdos racistas e de segregação racial objectiva. Mais: a legislação e a Constituição proíbem as manifestações de racismo. São estas considerações que permitem dizer que “Portugal não é um país racista”, o que parece ferir as sensibilidades de alguns políticos, mas também que as designações de “racismo estrutural” e “racismo sistémico” são meros divertimentos semióticos de quem quer alimentar uma disciplina na sua faculdade.
O mundo contemporâneo tem de aprender a tratar do problema do racismo. É uma das suas grandes chagas. Racismos de todas as cores e com implicações sociais, culturais, politicas e económicas. Racismos em todos os continentes, entre etnias diferentes ou contra as minorias. Certos países são racistas, enquanto em outros há racismos, diferenças evidentes, mas que não interessam aos agitadores de ocasião. Em praticamente todos os países que adquiriram a independência depois da segunda guerra, surgiram, por vezes violentamente, fenómenos de racismo contra grupos locais, contra antigos colonos e contra vizinhos rivais. Nenhum continente está hoje livre de racismo. Um mundo mais decente é um mundo com menos racismo, mais integração e mais igualdade de oportunidades. E com menos pessoas apostadas em exacerbar os racismos por oportunismo político.
 Público, 2.8.2020

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