17.11.20

No “Correio de Lagos” de Out 20 - O SEGURO DE VIDA

 


«Quando a verdade choca com os interesses de um grupo, este põe-na de lado» — Yuval Harari (cit. de memória)

À MEDIDA que se aproxima 2021 (ano em que haverá, pelo menos, dois actos eleitorais), é cada vez mais claro, pelo menos para mim, que a maioria das pessoas vai votar no “seu partido”, independentemente do que os candidatos tenham feito ­ou deixado de fazer nos últimos anos, dando razão a quem diz que “de nada adianta discutir com quem é insensível à lógica e às evidências”. E foi a constatação, mais uma vez renovada, desse verdadeiro ‘seguro de vida’ — dos que se querem perpetuar no poder — que me trouxe à memória um curioso episódio, envolvendo o meu saudoso amigo Duarte, e Ana, a sua filha mais velha.
Foi assim:
Durante muitos anos, e sempre por esta altura do Outono, o Duarte desencaminhava-nos para longos passeios pelo interior do país, que começavam de manhã cedo e se prolongavam, muitas vezes, até altas horas da noite.
No entanto, e para que se perceba o que vou contar, é preciso dizer que ele era uma pessoa extremamente culta e viajada, pelo que se sentia autorizado a impedir que mais alguém “metesse prego ou estopa” no programa que ele estabelecia em segredo e com muita antecedência (com a ajuda de um mapa das estradas e do “Guia de Portugal”), tomando a seu cargo as definições do trajecto, do destino, e de tudo o resto — em que se incluíam, obviamente, as paragens para apreciar os monumentos, as paisagens, a gastronomia... enfim, tudo aquilo que fazia com que, ainda hoje, eu recorde os mínimos pormenores dessas preciosas passeatas. E não é necessário dizer-se que alguém como o Duarte só podia ser um apaixonado pelo nosso Património e pela Natureza, sofrendo, em grau superlativo, com os atentados a que, tantas vezes, eles são sujeitos por esse país fora.
Ora sucedeu que, no decorrer de umas dessas viagens, nos deparámos, de súbito, com uma construção monstruosa que estava a crescer no meio de uma das mais belas paisagens portuguesas — e eu, que ia a conduzir, abrandei, e fiz o inevitável comentário que, começando com um “Como é que isto é possível?!” se espraiou em considerações que, por serem óbvias, me dispenso de aqui reproduzir.
Mas isso, infelizmente, não teria nada de novo se não se desse o caso de o Duarte ter ficado calado, limitando-se a ouvir o meu monólogo sem me interromper, e a retomar, em seguida, a história que pouco antes tinha começado a contar. O mais curioso, porém, é que a história não ficou por aí, pois, no regresso, ao passarmos novamente pelo trambolho, foi a sua vez de não poupar epítetos contra “a corja de cavalgaduras, estúpidos, ignorantes e corruptos” que faziam (ou permitiam) uma coisa daquelas.
Normalmente, em casos assim, quando um de nós dizia “mata!” o outro dizia “esfola!”, mas dessa vez não abri a boca, estupefacto com a mudança de atitudes, que em poucas horas haviam passado da indiferença à quase-histeria.
Todavia, o mistério não durou muito, pois a Ana, que nos acompanhara silenciosamente no banco de trás, ‘tirou-me a venda dos olhos’ quando, um pouco à frente, parámos numa estação de serviço: lendo-me o pensamento e contendo o riso, chamou-me à parte, e, em voz baixa, disse:
— Então não conheces o meu pai?! É claro que ele não ia manifestar-se contra aquele aborto correndo o risco de a Câmara Municipal lá da terra ser do seu partido! Por isso, durante o almoço informou-se, e só quando soube que era “do inimigo” é que se sentiu à-vontade para dizer o que lhe ia na alma...
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NOTA: À falta de fotos do “monumento” em causa, aqui deixo uma, de um outro... e que até nem destoa.

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1 Comments:

Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

A imagem é de um trambolho dos anos 60, em Lagos, que ninguém é capaz de demolir, apesar de isso estar previsto para 2019.
Julgo que seria um empreendimento de Belmiro de Azevedo.

18 de novembro de 2020 às 09:33  

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