10.4.21

Grande Angular - Justiça e violência

Por António Barreto

justiça é um tema de permanente discussão. Ainda bem. Mesmo se por vezes temos um forte sentimento de impotência: fala-se, fala-se, fala-se e pouco se avança.

Nos últimos anos, a “questão da justiça” tem estado sempre ligada à corrupção. Quando se reclama melhor e mais justiça, é quase sempre com a corrupção em mente. Ou então pensa-se na morosidade, facto indesmentível, e na parcialidade, problema complexo.

Para além da crise de morosidade e da corrupção, há uma justiça que falta fazer. A justiça do crime de violência doméstica! A recente publicação do “Relatório anual de segurança interna” faz-nos recordar que em Portugal se cometem cerca de 300 000 crimes por ano. Um pouco mais de 800 por dia. Em comparações europeias, geralmente difíceis por causa dos conceitos e dos contextos, há casos em que Portugal está entre os mais violentos, outros a meio da tabela, outros ainda entre os mais pacíficos. Mas a violência doméstica tem muito especial incidência entre nós.

Segundo a tipologia oficial, os 23.000 casos de violência doméstica constituem o primeiro dos crimes, seguido de furto em automóvel, da burla informática e da ofensa à integridade física. São mais de 60 crimes de violência doméstica por dia! Crimes denunciados, sublinhe-se, que não incluem as pancadarias silenciadas, as agressões escondidas e os maus-tratos que todos os dias homens infligem às mulheres e com que adultos entendem educar filhos.

Em dez dos dezoito distritos do país, a violência doméstica é o primeiro crime denunciado. A pior violência é evidentemente o homicídio. São assassinadas, por ano, em Portugal, mais de 30 mulheres, em contexto de relações íntimas. Em quinze anos, são mais de 550 assassínios e mais de 600 tentativas. Sempre em contexto familiar.

Bater nas mulheres: é costume insuportável de muitos portugueses. Não é fácil encontrar estatísticas europeias. Também não interessa muito. O que temos é suficientemente mau. Quando se fala de violência doméstica, há várias especialidades. Conforme quem bate e quem apanha. Mas o principal caso é o dos homens e maridos que batem nas suas mulheres, namoradas e companheiras. Depois disso, pais que batem nos filhos ou nos velhos. Marginalmente, também se bate em homens, o que interessa muito os “voyeurs”, mas não tem significado estatístico. Homem que bate em homem, mulher que bate em mulher ou mulher que bate em homem: são casos residuais.

Tanto ou mais do que as causas do crime ou do que a protecção das vítimas, importa olhar para a justiça. Esta tem dado exemplos escabrosos de complacência com os homens violentos em casa, de benevolência com os agressores e de piedade para com os que batem nas mulheres. Há muitos magistrados preparados para desculpar os homens que perdem a cabeça. Como há até os que pensam que “elas estavam a pedi-las”… Ou os que acreditam que “bem lá no fundo, algumas gostam”… Entre nós, a justiça não está preparada para castigar os maridos ciumentos e os viciados na violência masculina. Grande parte da justiça portuguesa olha com condescendência e bom humor para os homens violentos.

Como se pode imaginar, o problema recusa simplicidades. As causas são muitas. As consequências também. As circunstâncias são variadas, os métodos e os procedimentos também. O que quer dizer que a luta contra a violência doméstica e em particular a violência masculina contra mulheres e crianças exige o concurso de disciplinas várias, de processos complexos e de aproximações sofisticadas.

Importa a educação, dirão uns. Educar desde o berço. Educar para a igualdade. Educar com doçura. Muito bem. Tudo isso é verdade. Quanto tempo demora? Até quando teremos que conviver com esta violência impune? Reformar as mentalidades, dirão outros. É a mais banal das orientações. Quando alguém não sabe o que pensar nem o que fazer, conclui que é necessário reformar as mentalidades. Sobretudo depois de estabelecer que se trata de “problema cultural”. Os autores de tais opiniões esquecem-se de dizer o que é exactamente a reforma de mentalidades, como se faz e, mais difícil ainda, quem são os reformadores que vão reformar as mentalidades dos outros!

Só se vê uma maneira com eventuais resultados visíveis a prazo: através da justiça. As leis vigentes são débeis. As políticas em vigor são tímidas. Os magistrados são frequentemente machistas. Os tribunais cultivam fantasias inadmissíveis. Sem esperar pela reforma de mentalidade e pela formação de um “homem novo”, é na justiça e com a justiça que se pode agir.

É verdade que se deve proteger as vítimas batidas, abrigar as mulheres violadas ou ameaçadas, recolher as crianças maltratadas, apoiar os velhos atemorizados… Tudo isso é verdade, mas o essencial é não deixar o criminoso à solta, não permitir que o violador se passeie pela cidade, não conceder facilidades de vida ao homicida, não tolerar o assassinato, não premiar o agressor…

Pode fazer-se muito. Já. Em primeiro lugar, aprovar leis positivas, duras, sem margens para interpretações e variações poéticas. Segundo, aplicar leis punitivas com prisão firme, sem os remorsos da “severidade excessiva” e sobretudo sem pena suspensa, mal endémico de grande parte da justiça portuguesa. Como é sabido, é frequentemente mais castigado o roubo de uma sande num supermercado do que uma carga de pancada na mulher ou um braço quebrado no avô. Terceiro, multas elevadas aos prevaricadores, muito sensíveis na carteira. Quarto, aplicar castigos duros relativamente à condição profissional. Não custaria nada ver que um assassino, violador ou agressor de mulheres e crianças fosse expulso da função pública, não tivesse acesso a empregos nas áreas públicas e não fosse admitido em instituições de educação ou formação. Quinto, exigir do Conselho Superior de Magistratura uma atitude mais activa, legalmente mais firme e moralmente mais aceitável relativamente aos magistrados que cultivam devaneios sobre o “macho latino”, o “ciúme masculino”, a “dignidade viril” e a “auto-estima ferida” que supostamente fariam parte da bagagem cultural dos homens portugueses. Ao Parlamento e ao Governo compete ainda declarar, nas suas competências de elaboração de politicas e de formulação de estratégias, que a luta contra a violência doméstica e a violação seja considerada prioritária.

Se há domínio em que a bondade é inútil, é bem este.

Público, 10.4.2021

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