Grande Angular - Provavelmente, a pior crise…
Por António Barreto
Guerra na Europa? A inflação mais elevada das últimas décadas? Uma persistente pandemia que não se reduz à ínfima espécie? A dificuldade em desenvolver o investimento privado? O encerramento de urgências de obstetrícia e de maternidades, vários dias por semana ou por mês, em múltiplas localidades? O aumento do custo de vida e dos preços dos bens alimentares a ritmos raramente vistos? Não! Nenhum destes factos, nenhuma destas dificuldades, nenhum destes problemas provocou a presente crise política, provavelmente a pior de todas desde a bancarrota de 2009. O que foi então? O que se passou para que as demissões se sucedam, os partidos exijam a demissão do governo, os grupos parlamentares apresentem moções de censura e se fale em sucessão no governo e no partido como se fosse para amanhã?
Passaram-se várias coisas. São várias as ocorrências. A primeira é a verificação que este governo não sabe governar. Distribui o que pode. Arranja financiamentos europeus. Dá uns subsídios. Adia uns problemas. Cria mais umas comissões. Mas não sabe governar. Gaba-se do que não fez e esquece o que é culpa sua. O que depende da Europa, da economia internacional e da empresa privada vai melhorando ou aguentando. O que depende do governo, como a saúde e a educação, ou das autoridades nacionais, como a justiça, não melhora nem aguenta.
A segunda é o desenvolvimento da luta das classes e o aumento de movimentos de protesto. O custo de vida está a atingir níveis inesperados. Os salários não aumentam nem sequer para cobrir a inflação. Distribuir cheques de 100 ou 200 euros não compensa o aumento dos preços dos alimentos, dos combustíveis, da energia e das rendas de casa, sem falar nos juros bancários. De admirar seria a hipótese de nada acontecer. Mas o governo não estava à espera. Ministros e secretários de Estado ficaram nervosos. No partido, há inquietação.
A terceira é a entrada em vigor, com redobrada energia, da confusão entre despotismo e ética republicana. Os nossos governantes consideram que, com votos e boas intenções podem fazer o que quiserem. Nepotismo no governo? Favoritismo na administração pública? Privilégios nos ajustes directos? Emprego de familiares? Encomendas a correligionários? Cruzamento entre funções políticas e laços familiares? Indemnizações indevidas, vencimentos duplicados e subvenções desviadas? Tudo parece permitido a quem tem os votos. Os valores que permitem erradicar os costumes de antigamente constituem o que vulgarmente se designa por ética republicana. Mais ainda: servem para excluir os inimigos da República. O pior é que, entendida como é entre nós, a ética republicana legitima a ideia sinistra de que os votos do eleitorado e a pertença ao partido legitimam todos os comportamentos.
A quarta é a falta de competência para uma das tarefas mais interessantes e mais exigentes de qualquer governo: a junção entre o imediato e o longo prazo. Entre a questão prática e a estratégia. Entre o caminho que está diante de nós e o destino do percurso. Os casos mais inquietantes de que se fala hoje são reveladores. Ao encerramento das urgências de obstetrícia e das maternidades, o governo responde com declarações sobre os problemas estruturais. Aos estrangulamentos crescentes do Serviço Nacional de Saúde, o governo garante que se trata de problemas estruturais e que só com reformas a longo prazo se poderá ver o melhoramento. A dificuldade de recrutar e distribuir professores e médicos justifica-se com a existência de problemas estruturais. A infâmia do trabalho imigrante clandestino e do tráfico de mão-de-obra resulta de deficiências estruturais. Da água às florestas, dos preços dos alimentos aos custos de electricidade e gás, tudo depende de questões estruturais e só se resolverão com tempo e reformas estruturais. E sustentáveis, como dizem. Assim se adiam e deixam de resolver problemas concretos. Perante a falta de enfermeiros e diante do trabalho ilegal nas culturas intensivas, os governantes sentem-se desarmados e julgam que os problemas são sempre estruturais e de longo prazo. O primeiro reflexo consiste em criar uma superestrutura, um Observatório, uma Comissão, um Conselho e uma Autoridade. O que exige que previamente se deva elaborar uma sofisticada estratégia, assim como um plano a médio e longo prazo. O que só fará sentido com uma visão “holística” dos problemas. Ou uma abordagem “global, transversal, multidisciplinar e sustentável”. Com tantos anos em funções, os governantes não se dão conta de que estes argumentos já não convencem. A sua presença à frente dos ministérios transformou-se num problema estrutural.
A quinta é a falta de percepção das dificuldades dos cidadãos perante os serviços públicos, as autoridades, as instituições, as grandes empresas de serviços e os órgãos de governo. O melhor exemplo desta insuficiência governamental é o do gás e da electricidade. As facturas são absolutamente incompreensíveis. A explicação dos enormes aumentos é hermética. É difícil encontrar um cidadão que tenha percebido o que se passou com estes serviços e com a existência de dois ou mais mercados paralelos, com preços dispares e muito diferentes.
A sexta é a revelação de uma evidência: o governo não sabe o que fazer com uma maioria absoluta. Na ideia dos governantes e em poucas palavras, esta última resume-se a um princípio ou uma norma: quem tem os votos, manda. E faz o que lhe apetece.
A sétima reside na agitação partidária que se instalou tão rapidamente. Parece ter sido dado o recado: está aberta a sucessão, estão em jogo empregos e cargos, recomeçou o leilão de adjudicações directas e dos concursos com fotografia. Alguns membros do governo e dirigentes do PS estão a revelar-se mentirosos, covardes e velhacos como raramente se viu na história recente. A competir em cinismo e crueldade com os famosos “barões do PSD” de há duas ou três décadas. Fogem às suas responsabilidades, escondem-se atrás de biombos, deixam cair acusações discretas contra os seus colegas e instalam verdadeiras armadilhas com meias palavras, fugas e omissões. A luta pela sucessão atingiu graus de violência política quase inéditos. O combate pelas nomeações de amigos e familiares faz-se à vista de todos. A sofreguidão e a ganância transformaram-se em razões para governar.
Esta parece a crise das paixões menores de alguns políticos.
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Público, 31.12.2022
Etiquetas: AMB
1 Comments:
Um bom ano, como os bons líderes europeus que a nossa época teve a sorte de ter, será com certeza.
Bom 2023
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