25.12.22

Natália e os policiais - *No Lar com uma Santa (?) Filomena

Por Antunes Ferreira

Três malas Samsonlite grandes, uma mais pequena de trólei, uma credência também pequena estilo manuelino em nogueira com portas de vidro fabricada e Paços de Ferreira, a capital do Móvel e um oratório igualmente vidrado com santos dentro e bem assim a sua mala de mão – eis a bagagem levada pela Senhora Don Natália Margarida de Sousa Ferreira e Montenegro, para o Lar de Santa Teresa do Menino Jesus no dia 13 de Dezembro de 2917.

 

Filha única, viúva do brigadeiro Vasco Manuel Grave Silva e Montenegro, mãe do advogado Aurélio Vasco Ferreira e Montenegro que começara a traçar uma carreira que se antevia auspiciosa. Dona Natália nascera e crescera em Paços de Ferreira na mansão do Ferreiras clássicos adversários dos Sousas ao longo da História local e nacional. Estudiosos reclamavam para o local a sua ancestralidade retomando-a ao Neolítico. Aliás o Dolmen da Leira Longa atestava-o. 

 

Acompanhando o “defunto” (como ela lhe chamava após vinte e oito anos de matrimónio) andou pelo Ultramar – ali era Portugal – Montevideu e Atenas onde ele fora adido militar nas respectivas embaixadas e assim, dizia ela, conhecera Mundo. E as suas podridões, pois não há gente  e terra tão boas como as nossas. Com algumas excepções, reconhecia.

 

Aurélio viera para Lisboa para cursar Direito e o Vasco passara à reserva, mas um cancro no pâncreas levara-o em sete meses com quimio e rádio debalde. Tinha comprado um T5 na alameda Afono Henriques num prédio quase junto à Fonte Luminosa (o militar gostava de dar festas e convidava muita gente daí o espaço da casa) onde depois do seu óbito ficaram a morar apena três bocas.

 

Mãe, filho, que se mantinha solteirão sem preocupações com cama, mesa e roupa lavada e a criada/governanta Conceição, natural de Meixomil que servia desde gaiata na casa dos Ferreiras e com eles viera para a capital. Mas eis que surgira o busílis da questão: talvez pelo pouco – ou nenhum – hábito da cidade, ao atravessar uma rua fora da passadeira Conceição fora atropelada e morrera na ambulância do INEM.   

 

Dona Natália experimentar uma cabo-verdiana: deu para o torto, roubava na dispensa. Veio depois uma georgiana: nãos entendiam no falar; foi-se. Conversaram, Aurélio profissionalmente ia de vento em popa. Tinha a sua própria firma de advogados com sede na rua do Ouro: Montenegro, Nabais e associados seguiam colectando clientes exibindo uma sentença de Martin Luther King: : “A injustiça em qualquer lugar é uma ameaça à justiça por toda  parte.”

 

Não admirava, portanto, que Natália pudesse ficar sozinha naquele casarão. Voltar para Passos? Nem pensar. Adquirira novos hábitos, não pensava sequer viver na pasmaceira ainda que já classificada de citadina. Postos os prós e os contras ambos os Montenegros chegaram à concussão: um Lar para a Terceira Idade de preferência em Lisboa, quando muito nos arredores – mas próximos. 

 

Doutor Aurélio iniciou uma via-sacra, visitou tudo o que lhe pareceu viável, mas, por isto ou por aquilo, nada o conseguia satisfazer. Ainda hesitou num que descobriu no Algueirão, porém ao falar com o director do empreendimento entendeu que ali o que interessava era o dinheiro e por conseguinte afastou igualmente a hipótese esfumando-se-lhe cada vez mais a esperança de encontrar uma solução breve.

 

Mas contra a expectativa, na manhã que se seguiu à frustração mencionada a menina Florinda, sua secretária, que estava a par do problema, pediu-lhe a tarde para assistir ao velório duma tia-avó e informou-o que com a morte da velhota abrira uma vaga no Lar em que se encontrava acamada e que era na rua do Crucifixo. Mais ainda: era um primor, mas não era barato. Talvez ele…

 

Meu dito, meu feito. Num ápice nem foram precisas grandes negociações, aliás nem grandes nem pequenas. Rapidamente Aurélio chegou a um acordo com a freira laica D.ª Maria de Fátima Menezes que dirigia o Lar; este era servido por quatro irmãs dominicanas e cinco empregadas civis para tratarem dos vinte e sete internados: dezassete senhoras e dez cavalheiros.

 

Dona Natália aceitou de bom grado a proposta e foi ver as instalações, detendo-se, naturalmente, no quarto que seria o dela. Como tudo na baixa lisboeta, o prédio era de traça pombalina e tinha até uma placa de bronze onde podia ler-se EDIFFIFICADO POR ENCARGO DE SUA EXCELLEMSSIA O ENGENHEIRO EUGENIO DOS SANTOS.

 

Mas os interiores tinham sido completamente mudados a fim de dar aos utentes toda a espécie de comodidades. Foi Aurélio quem a apresentou à directora e esta por sua vez o fez o médico Dr. Alexandre Coimbra que vinha uma vez por semana, geralmente aos sábados fazer o que chamava a sua “visita de saúde”. Entretanto, com a ajuda de duas empregadas Dona Natália começara a arrumar os seus pertences.   

 

Com o passar dos dias os hábitos foram-se sedimentando e os residentes adoptaram a nova habitante tanto mais que Natália tudo fazia para s ambientar; só num pormenor destoava: não alinhava nas tardes de bingo nem nas e monopólio. Na maioria das vezes era vê-la sentada a um canto da sala de convívio, ignorando o ecrã plasma da televisão, antes agarrada a um livro geralmente policial.

 

Esse era o seu calcanhar de Aquiles: as obras dedicadas aos crimes e a quem os descobria. Na credência, arrumada cuidadosamente nas prateleiras estava toda a colecção Vampiro “os mestres da literatura policial” podia ler-se na capa de cada um dos volumes. Joia da colecção era o seu número um: “O Assassinato de Roger Ackroyd” da Agatha Christie, rubricado pela autora que Natália comprara numa feira de rua no Pireu quando voltava dum cruzeiro pelas lhas gregas.

 

Além desses bens preciosos outro havia que lhe preenchia as medidas e tinha lugar de destaque no pequeno oratório: uma imagem da Santa Filomena. Com ela passava-se uma cena próxima do policial: para uns continuava a ser santa; para ouros não passava de mais uma fraude religiosa. A discussão arrastava-se ao longo das décadas e nenhum dos defensores da “sua” verdade arredava pé. Era santa com direito a missa? A Santa Sé, especialista em ambiguidades assobiava para o lado e fingia que era de outra estória.

 

Foi por isso que estoirou a bernarda. A Senhora Dona Laurinda (cujo quarto era ao lado do da Dona Natália) ao ver a reverência que a vizinha devotava à (duvidosa) santa perguntou-lhe qual a sua opinião sobre o desentendimento. “Mas qual desentendimento, Dona Laurinda? Isto é como nos livros policiais, O criminososabe-se logo quem é. Só falta descobrir o detective. Neste caso, garanto-lhe que não é o Vaticano!” Falou e disse.

 

 

   

Etiquetas:

3 Comments:

Blogger Plácido said...

A ortografia está uma desgraça

25 de dezembro de 2022 às 23:19  
Blogger Monteiro said...

Nota positiva à forma clara e límpida como escreve.

26 de dezembro de 2022 às 01:44  
Blogger Dulce Oliveira said...

Feliz Natal e próspero Ano Novo, JL.
Cá esperamos as suas deliciosas crónicas ao longo do Ano Novo, deste e dos que se seguirão.

26 de dezembro de 2022 às 15:17  

Enviar um comentário

<< Home