7.1.23

Grande Angular - O caldo entornado

 Por António Barreto

semipresidencialismo é uma forma de regime arriscada. Muitas vezes inútil, geralmente ambígua, quase sempre equívoca! Foi uma invenção de académicos, com uma aparência de sofisticação e inteligência. Por isso, era atraente. Na verdade, olhando bem para os factos, veio a revelar-se uma ilusão. Ou antes: os seus méritos académicos são certos, as suas vantagens políticas reduzidas.

 

Consta que o regime francês, a partir do presidente De Gaulle, seria o mais importante caso de semipresidencialismo. A República de Weimar seria um exemplo, além de dois ou três outros que confirmavam a teoria. Entres estes, Portugal evidentemente. Hoje, os manuais insistem em garantir que há várias dezenas de países, incluindo africanos e asiáticos, com regime semipresidencialista. Pode-se admitir a ideia, mas em geral não correspondem à realidade. Em grande parte trata-se de regimes presidencialistas com uns adornos. Ou parlamentares com um vago correctivo, a começar pela eleição directa do Presidente e pela faculdade de dissolução do Parlamento.

 

A história portuguesa do semipresidencialismo é feita de sarilhos e conflitos. Já quase esquecemos os tempos passados, mas o choque entre Presidente e Governo esteve presente. Por vezes, com acrimónia política e desgaste institucional. Quase sempre com perda de tempo e de oportunidades. A competição e o conflito foram a regra. 

 

Durante quarenta anos, com quatro Presidentes e vinte Governos, com várias maiorias ou coligações, sempre houve querelas pouco úteis para o país e para a democracia. É tipicamente nacional: entre dois modelos fortes ou claros, presidencialista ou parlamentar, escolhemos o que é assim-assim. Nem uma coisa nem outra, com os defeitos de ambos. Juntámos as duas fraquezas. Tal como a predilecção pelos governos minoritários e o horror aos governos maioritários.

 

Dito isto, é forçoso reconhecer que houve, nos últimos anos, uma novidade importante: a ausência de quezílias institucionais! O Presidente Marcelo já exerceu o seu cargo com um governo de quase coligação, um governo minoritário e um governo de maioria absoluta. Em qualquer dos casos, o veredicto eleitoral legislativo e parlamentar impôs-se e o Presidente respeitou-o. Apesar de todos os partidos que governaram serem de doutrina e política diferentes das suas, o Presidente ajudou. Assim vivemos uma paz institucional rara, talvez inédita.

 

Mais ainda, desde sempre Marcelo Rebelo de Sousa decidiu utilizar o seu cargo para apoiar o governo e o Parlamento. Por esse feito, merece felicitações. Fê-lo sem reservas mentais, nem armadilhas. A ponto de ser corrente dizer que o Presidente apoia demais o Governo, em vez de o vigiar ou compensar! Os socialistas, beneficiados, agradecem e reconhecem. Mas todos os outros partidos e muitos comentadores insistem em ter saudades dos tempos em que havia conflitos. E todos parecem querer absolutamente que o PR seja um fiscal, um polícia ou um contrapoder.

 

Ora, não é para isso que se elege o PR. Este é eleito para acrescentar legitimidade e solidez ao edifício do Estado democrático. Não para vigiar, sabotar, contrapesar ou fiscalizar. Nesse aspecto, este PR foi o que fez a melhor escolha e que melhor compreendeu o seu papel.

 

Não sabemos o que se segue, mas o caldo parece estar entornado. As boas relações entre Marcelo e Costa estão toldadas. Entre o PR e o Governo estão crispadas. Não se sabe bem de quem é a culpa, se de um ou se do outro. Ou até dos dois, como no Tango. Mas é seriamente de lamentar que este bom exemplo de colaboração não tenha seguido até ao fim.

 

Não elegemos o PR para vigiar ou fiscalizar. Para isso há o Parlamento, o Tribunal Constitucional, a Justiça em geral, o Provedor de Justiça, o Ministério Público, o Tribunal de Contas, até as polícias. Sem falar na oposição. E sem esquecer um dos mais importantes, a imprensa livre. A concepção do Presidente como contrapeso é doentia! E perversa! Boa receita para telenovela, mas má solução para a democracia e para o governo do país.

 

Os mecanismos existentes e que poderiam fortalecer o sistema de peso e contrapeso ou de controlo e fiscalização estão à disposição de todos. Mas é verdade, no entanto, que os nossos constituintes nunca quiseram optar por métodos mais claros e mais eficientes, como, por exemplo, a segunda câmara, os direitos da oposição parlamentar, o sistema eleitoral uninominal e o recurso a iniciativas populares e a referendos. Prefere-se sempre uma solução híbrida e esquisita, como este nosso sistema proporcional, a moção de censura construtiva (que está na forja há décadas…), os governos de minoria e coligação e a tentativa de recusa ou impedimento dos governos de maioria. Além disso, sempre se preferiu uma vantagem leonina e desleal da maioria relativamente aos restantes grupos parlamentares.

 

É bem possível que Marcelo seja o presidente que melhor compreendeu o papel de apoiante e de colaboração. Louvado seja! Mas esse clima acabou, vá lá saber-se exactamente porquê. O Presidente poderia ter incomodado o Governo e o PS, para ajudar o seu antigo partido, para simpatizar com a direita (sua origem política) e para favorecer novos agentes políticos. Não o fez. Por bondade ou circunstância, por necessidade ou dever. A verdade é que não o fez. O Governo, enquanto lhe convinha, agradeceu. Agora, com as crises dos últimos dias, tudo pode acontecer. Mas o clima de colaboração acabou. Para mal de todos nós. E para bem dos que procuram a felicidade deles na instabilidade dos outros.

 

A crise política e governamental das últimas semanas está directamente ligada a esta questão das relações entre órgãos de soberania. A tal ponto que o Primeiro-Ministro sugeriu que as futuras nomeações de membros do governo sejam precedidas de um escrutínio especial. Esta proposta fica a constar definitivamente do anedotário inesquecível da política portuguesa. O Primeiro-ministro quer criar um sistema de controlo da moralidade, das biografias, dos currículos, do registo criminal e do cadastro dos membros do governo que propõe e que o PR poderá ou não aceitar, ficando assim definitivamente co-responsável. O assunto não merece sequer ser analisado.

 

Os acontecimentos na origem da crise de governo não são episódicos e triviais. São coisa séria, para dizer o menos. Não são fortuitos e excepcionais. Fazem parte de hábitos e de costumes. São as regras vigentes. Servem redes criadas e alimentadas. Constituem sério veneno contra a democracia. Não se tratam com truques e armadilhas.

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Público, 7.1.2023

 

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1 Comments:

Blogger Bmonteiro said...

«de quem é a culpa»
Das mentes formatadas no espírito partidário. Que fazem questão de uma vez no poder, prescindirem de uma franca, honesta e séria colaboração, com alguém, como os PR, lhes surja como uma autoridade ou poder de nível superior, mais elevado. Ser informado, ouvido, e chamado a ajudar até! Ora um PM acabado de eleger, jamais se terá em conta de não saber, ele e o partido, como é que tudo se tem que resolver! Uns iluminados!
Bem iniciada com Mário Soares, repetida por norma por todos.
Que um PM no pós Passos, fosse capaz de lhe reconhecer algum mérito pelo executado, sem com tal estar a aplaudir Passos, apenas numa qq Never Land fora da galáxia.

7 de janeiro de 2023 às 21:17  

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