Grande Angular - Pesadelos dos dias de Verão
Por António Barreto
É uma das ideias mais sinistras, ou talvez apenas hilariante, da história da democracia portuguesa! O Parlamento “chama”, convoca ou solicita ao Presidente da República que se apresente numa Comissão de Inquérito Parlamentar! A ideia, se é que se lhe pode chamar assim, foi do partido Chega. O regimento diz que um partido com número suficiente de deputados pode impor uma comissão de inquérito sem que esta tenha de ser aprovada pela maioria. Aquele partido tem essa quantidade. E como é seu hábito, utiliza os meios postos à sua disposição pela democracia para inviabilizar, ridicularizar e eventualmente destruir a mesma democracia. O plano é inteligente. Mas tão facilmente desmascarável que surpreende que os outros partidos, alguns dos outros partidos se deixem embalar.
O Parlamento não pode nem deve convidar ou convocar o Presidente da República! Se o fizer, deverá simplesmente ser mandado à escola ou ao sanatório. O Parlamento também tem o dever de cumprir a Constituição e as leis, tem a obrigação de não convidar ou convocar o Presidente da República. O Parlamento não tem essas competências.
O Presidente da República não deve ir ao Parlamento prestar declarações ou sequer esclarecimentos, não deve hesitar em responder, não precisa de ponderar na resposta, nem sequer de medir as palavras. Não é não! O seu dever é não ir ao Parlamento e dar à Comissão de Inquérito uma ensaboadela constitucional.
Já são conhecidas as opiniões de gente competente, de esquerda e de direita, da academia e da política, de funções públicas e privadas, para que se perceba que a questão nem sequer é realmente polémica. Estamos perante uma provocação medonha de carácter político e constitucional.
É, todavia, curioso ver os comportamentos dos outros partidos. Parece cada vez mais evidente que estes, alguns destes, conforme as ocasiões, não se importam de utilizar o Parlamento, as hesitações regimentais, as provocações do partido Chega e as tentações pecaminosas dos outros partidos para incomodar o Presidente da República, o Governo, os partidos da oposição…
Já com os casos da banca e da TAP, agora com as gémeas, se tinha percebido que o partido Chega utilizaria este e outros dispositivos para pôr em crise o Parlamento, o Governo, o Presidente e Constituição. Até agora, a habilidade tem funcionado. Ainda por cima, os pequenos partidos, com especial brilho para o Bloco, aproveitam ao máximo o dispositivo e as iniciativas dos outos. O caso das gémeas só chegou àquele estado de deliquescência, de má-criação demagógica e de hostilidade porque os outros partidos deixam correr, contribuem com perguntas e questões, ajudam à missa e são mesmo por vezes tão agressivos quanto os autores da iniciativa.
Dizem que o Verão político é propício à coreografia e a jogos florais para passar o tempo. Como há quem diga que é esta a estação do disparate. Tudo isso é possível e talvez verdade. O certo é que não estamos em tempo adequado a essas cenas. O mundo e a Europa estão em mau estado e sob ameaças diversas, convinha que estivéssemos preparados para organizar o nosso futuro colectivo. Ora, aquilo a que assistimos são exercícios de rasteiras e chicanas com o fim de aumentar as sondagens e de evitar ou incitar a convocatória de novas eleições.
O governo do PSD está a sair-se melhor do que se pensava, mas tem o seu futuro apertado: ou se mantém por impotência da oposição, à espera de aumentar os votos; ou é impedido de governar e fica à espera de ganhar votos como vítima. O PS está a sair-se pior do que se esperava. Vê-se na cara que estão entalados entre a oposição que pode derrubar o governo e a doce oposição de Sua Majestade que o pode encostar às cordas por muitos anos. O partido Chega está a sair-se como se esperava, ágil, arruaceiro e irresponsável como é o seu carácter, à espera que a democracia lhe ofereça tudo o que não merece: tribuna e importância. De qualquer modo, já conseguiu algo de valioso para si: os grandes partidos democráticos não sabem como se comportar diante de um brigão que utiliza a paz que lhe oferecem. Quanto aos pequenos partidos, pouco ou nada se espera, a não ser uma voz de vez em quando. Pena é que se deixem tantas vezes absorver pelas manobras demagógicas dos debates e dos inquéritos parlamentares.
Entre os partidos e neste Parlamento alguém ouviu ou presenciou alguma discussão séria sobre a posição de Portugal na Europa, diante dos problemas que se abrem todos os dias, das dificuldades francesas e alemãs, das provocações húngaras, dos problemas polacos, da tragédia ucraniana e da reforma da NATO? Alguém esteve presente diante de um debate sobre a evolução da política americana depois das eleições de Novembro? Alguém deu conta de uma reflexão pública e partilhada entre os partidos, o governo e o Parlamento sobre a enorme crise em curso no Próximo Oriente e no Mediterrâneo com o terrorismo islâmico e o massacre israelita?
Vindo mais para casa, onde está a acção conjunta, que envolva vários partidos ou instituições, a propósito de situações urgentes que não se resolvem com flores de estilo e manobras habilidosas? Já se assistiu a um debate sério sobre as Forças Armadas quase em vias de extinção? Já alguém ouviu falar de um debate e de uma acção de órgãos de soberania e de partidos sobre a tão crítica justiça? Já se reparou que as filas de espera nas ruas e diante dos serviços de imigração ou das Lojas do Cidadão não se resolvem com minorias de governo, com duodécimos nem com inquéritos parlamentares armadilhados? Já alguém assistiu a uma discussão séria e produtiva no Parlamento e nas instituições sobre as reformas urgentes do Serviço Nacional de Saúde e sobre a decadência dos cuidados de saúde pública ao longo dos últimos dez ou vinte anos? Já alguém pressentiu um qualquer debate ou uma conversa sobre a possibilidade de encontrar uma solução política maioritária e capaz de olhar para o que falta? Já alguém ouviu rumores e reflexões sobre os problemas e não sobre manhas e tropelias?
Infelizmente, o que parecem ser pesadelos de noites de Verão são sinais profundos e factos reais de crise séria, que não se compadece com coreografia, nem com pezinhos de dança e bailado artístico, nem com o habitual cinismo. Por que esperam os partidos democráticos? Por mais uma sondagem?
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Público, 3.8.2024
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