16.1.20

Crónica – Memórias da juventude

Por C. Barroco Esperança
Quando em 1961, ido da Guarda, fui colocado no Bairro dos Penedos Altos, na Covilhã, logo surgiram convites habitualmente destinados aos professores.O primeiro, com tratamento de V. Ex.ª, que me faria duvidar do destinatário, não fora a coincidência do nome, foi recusado. E os seguintes. Não me interessavam e eram pouco recomendáveis as origens.Em abril de 1963 o Papa João XXIII tinha publicado uma encíclica destinada não só aos fregueses, mas a todos os homens de boa vontade, as mulheres não mereciam referência. Recebi o convite para um colóquio, tal como as 15 docentes daquela escola onde era eu o único homem, com alusão ao tema a discutir, a Encíclica PACEM IN TERRIS.Dessa vez, por razões que o Diabo explicará, compareci à hora e no local que o convite, subscrito por um padre S. J., indicava. Um padre, culto e comunicativo, dissertou sobre a encíclica, em termos encomiásticos, e pôs o tema à discussão.
Retivera que o Papa pedia aos países ricos que ajudassem os países pobres e, logo que tomei a palavra, perguntei se tal pedido era ingenuidade papal ou hipocrisia, sabendo-se que os ricos só ajudariam os pobres se obtivessem vantagens.
Foi urbana a resposta do padre preletor que contestou a minha afirmação, mas a plateia foi insensível e inamistosa. Havia de me acontecer muitas outras vezes na vida.
Só não esperava ser chamado uma vez mais, por ordem do tenente Gaspar, ao comando da PSP, para me dar conselhos durante a noite, devia sofrer de insónias, e só terminar a caridosa prédica às cinco ou seis horas da madrugada com o habitual conselho, V. Ex.ª, este era o tratamento para todos os cidadãos da Oposição ao regime, está a prejudicar o seu futuro, o senhor Dr. Raposo de Moura, que muito prezo, é companhia que prejudica V. Ex.ª, tenha uma boa noite.
Não tardou que de Castelo Branco viesse um agente da Pide a ouvir o Delegado Escolar e outros professores da confiança deles, a meu respeito, pois o padre Morgadinho, irmão de um agente, comunicara que havia na Covilhã “um professor novo, atrevido, com cara de idiota, que precisa de ser vigiado”.
Já tinha sido provido como professor efetivo na Lourinhã, e desgostou-me o padre Morgadinho a chamar-me ‘novo’, já com vinte anos e a terminar o segundo ano de docência.
Aliás, a Pide vigiava-me há dois anos e o execrável governador civil da Guarda andava inquieto, comigo e com a minha mãe. O governador, Mário Bento Soares, de tanto odiar o honrado homónimo da oposição, não permitia que o tratassem por Dr. Mário Soares. Deixou cair o apelido paterno e assumiu para todos os efeitos o nome de Mário Bento.

Ponte EuropaSorumbático

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3 Comments:

Blogger José Batista said...

Honrosas memórias, caro C. Esperança.

17 de janeiro de 2020 às 22:51  
Blogger Carlos Esperança said...

Um pouco amargas, José Batista.

18 de janeiro de 2020 às 16:38  
Blogger Ilha da lua said...

Memórias,de alguém, que teve a coragem de dizer : Não! Num tempo ,não muito distante, que esperemos nunca mais se repita!

18 de janeiro de 2020 às 20:21  

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