19.1.05

«O parente pobre» - artigo de Carlos Pinto Coelho

É verdade que o som é o parente pobre da mensagem em televisão, dominada sobretudo pela imagem.

Até há poucos anos, o chamado «áudio», na gíria dos profissionais, cedia ao império quase absoluto do visual, tanto nos orçamentos para compra de equipamentos como na própria concepção de programas, onde os microfones eram uma praga que «estragava» os cenários.

O importante era o «boneco». Foi assim durante décadas, quando a televisão era território de grandes criações e a concorrência se fazia pelo primor das séries documentais e ficcionais, dos telefilmes, da animação ou do teleteatro.

Mas, pouco a pouco, tudo foi ficando demasiado caro.

Os custos de produção aumentavam à medida que novas e dispendiosas tecnologias vinham acirrar concorrências desmedidas e tornar cada vez menos prováveis os lucros.

Quando a recessão fez rombo nas receitas de publicidade e a globalização favoreceu a concentração dos media em meia dúzia de gigantes, estava aberto o caminho para uma alteração profunda das programações.

Chegara a era das entrevistas longas, dos debates, das «stand up comedies» e dos concursos falados. A palavra substituía-se à imagem. Não por apego à cultura ou iluminação dos povos, mas por opção lucrativa.

O «produto» mais barato enchia horas e horas de emissão.

Assim estamos hoje. Nada tenho contra. Dos raros programas de televisão a que sou fiel, a maioria faz-se de entrevistas e debates. Por isso me dói que o som ainda seja o parente pobre da mensagem em televisão.

Quanto mais a palavra é o conteúdo, mais se exige que ela chegue, intacta, a quem a recebe. Mais ela tem de ser emitida e recebida com propriedade e com limpidez.

Quando utilizada em grupo, espera-se também um trabalho de, digamos, orquestração, que a torne perceptível sem ruídos. Dos escassos programas de debate disponíveis, procuro nunca perder o «Expresso da Meia-Noite», a «Quadratura do Círculo» e o «Clube de Jornalistas», por exemplo.

Interessam-me, por norma, os seus intervenientes, temas e ritmo. Gosto muito do ambiente visual do primeiro, nada do do segundo e pouco do do terceiro, o que não vem agora para o caso.

Grave é o resto. Raramente, em qualquer dos programas que citei, consigo chegar ao fim sem uma sensação de incómodo ou irritação, provocada por sucessivas sobreposições de vozes, ou porque alguém num momento interessante é calado por uma súbita algazarra, ou por desgovernos de câmaras saltitando a despropósito ou falhando o rosto de quem fala.

Os franceses têm uma expressão para isto: «bordélique», que não me atrevo a traduzir literalmente.

O debate em televisão é um género delicado e difícil de praticar com sucesso porque os seus ingredientes são muitos e por vezes conflituais. Ao moderador importa que haja coloquialidade e polémica, mas também quer regra e cortesia.

Cada interveniente leva os seus próprios propósitos que, por diversos que sejam, radicam em vontade de afirmação na antena, e em legítima ambição de ser escutado com atenção e interesse, dentro e fora do estúdio. Ao realizador (forçoso é que seja pessoa culta e informada) cabe apreender com rapidez e inteligência o que se diz e reportar com fidelidade e humildade os gestos, as expressões, os olhares - enfim, a verdade de um encontro humano.

Ora tudo isto não é fácil, num estado de alerta acelerado pelos projectores e pelas câmaras. Basta, por isso, que um destes parceiros de jogo se exceda ou prevarique, para que o bonito castelo se desmorone. Irreversivelmente. Com efeito de estrondo do lado do espectador.

E perdem todos.

Perde o que se encavalita em quem fala porque toda a interrupção irrita e não é perceptível; perde quem estava a falar porque se desorienta, perde o moderador o seu múnus, perde o rumo quem vê em casa. E se o realizador cede à tentação de se impor e ordena inúteis passeios de câmara ou mudanças de plano fora da gramática de uma declaração, o programa enche-se de ruídos insuportáveis.

Tudo é som, num programa de palavras. Vem aí uma campanha eleitoral e, mais uma vez, será pelos debates televisivos (nunca demasiados) que muitos de nós iremos ver e ouvir protagonistas, ganhar e cruzar informações, eventualmente tomar decisões.

É bom momento para propor aos que fizerem debates, que dêem prioridade ao som.

Que nos deixem ouvi-los!
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Artigo de Carlos Pinto Coelho, publicado n' A CAPITAL de 16 Jan 05

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