19.11.05

«Ripa na Rapaqueca - O Futebol visto com outros olhos»

«ACONTECE»
Um livro sobre futebol e sobre o mundo de hoje

UM JOVEM jornalista norte-americano, Franklin Foer, convenceu o editor do seu jornal, o “New Republic”, a dar-lhe seis meses de licença e partiu para a Europa e o Brasil a investigar os bastidores do mundo do futebol profissional.

Acaba de publicar o resultado das suas descobertas num livro que já vendeu muitos milhares de exemplares: “How Soccer Explains the World” (“Como o Futebol Explica o Mundo”) – ed. Harper Collins, 2004.

MANDEI vir o livro dos Estados Unidos, li-o numa noite e depois telefonei a um conhecido editor, meu amigo: “Homem! Compra já os direitos de edição deste livro, garanto-te que é coisa inteligente e interessante para os leitores portugueses que gostam de futebol.” O outro riu-se: “Já comprei. Vou editá-lo ainda este ano.”

Sendo assim, não perco tempo e adianto já dois comentários.

O primeiro sobre o livro. Desde logo, é estranho que um jovem jornalista do país onde o futebol é ainda tão mal visto (ele próprio o diz) se tenha sentido atraído por um mundo estranho. E mais: que os seus chefes o dispensassem por tão longo tempo para um trabalho que não iria ao encontro do interesse imediato dos leitores. Talvez por causa dessa estranheza, o jornalismo que preenche as páginas deste livro é, também ele, fora do habitual.

Franklin Foer foi à Sérvia e viveu os meandros obscuros do Estrela Vermelha de Belgrado, correu perigos, fez entrevistas clandestinas e escreveu um capítulo de grande investigação com o título “Como o Futebol Explica o Paraíso dos Gangsters”. Na Escócia, envolveu-se pelos corredores políticos e religiosos que explicam as sangrentas rivalidades entre o Rangers e o Celtic e com esse material tenta fundamentar como o futebol explica aquilo a que chama “a pornografia das seitas”. Em Viena, foi conhecer a poderosa história do primeiro clube de futebol profissional judaico, o Kakoah, e isso permitiu-lhe explicar o ódio anti-semita contra os adeptos do Tottenham (insultados pela claque do Manchester por serem circuncidados, o que os levou a despirem as calças e exibirem os sexos em pleno estádio). É o capítulo sobre o futebol e a questão judaica.

Mas há mais: as guerras dos adeptos do Chelsea, furiosos quando o clube começou a contratar estrangeiros como treinadores e jogadores. Foi então que os primeiros guerreiros “hooligans” começaram os seus crimes nojentos, divididos por várias claques – que merecem um capítulo recheado de informação. O livro também passa pela onda de jogadores africanos que invadiu os clubes europeus (a que o autor chama, ironicamente, os “black carpathians”). Depois vêm histórias pouco conhecidas sobre a relação de clubes italianos entre os seus oligarcas e o poder político. E pormenores dos sucessivos infortúnios de Pelé, no mundo do futebol brasileiro. Até que Foer vai a Barcelona conhecer por dentro o FC Barcelona e com isso escreve um apaixonado capítulo intitulado “O charme discreto do nacionalismo burguês”. Mais longe ainda, este jornalista procura explicar como o futebol pode ser um veículo de explicação dos conflitos islâmicos, usando para isso o que viu e ouviu nos ambientes próximos do gigantesco estádio Azadi em Teerão (o maior do mundo, com 120 mil lugares sentados). O derradeiro capítulo chama-se “Como o futebol explica as guerras culturais americanas”.

Desconhecia a maior parte das histórias contadas nesta obra e estou longe de concordar com algumas das suas conclusões - como quando se diz que a América não pode ser responsabilizada pelo que fazem as suas grandes multinacionais – mas o livro merecia-me este apontamento.

O segundo e derradeiro comentário é o de quem provou um prato novo e agora quer mais. Também em Portugal o futebol provocou (provoca) mudanças substanciais de mentalidades, agita interesses, mexe com ódios e tradições. Também por cá, o antigo jogo pelo amor à camisola clubista perdeu para o grande negócio. Também aqui se vivem mudanças estruturantes, com a imigração rápida de jogadores de todas as proveniências. Também aqui há violência, acusações de corrupção, crispação e histórias mal contadas. Ou seja, também em Portugal haveria de se fazer um trabalho jornalístico como este. Há excelentes teses académicas sobre o futebol, há crónicas de grande craveira, há sólidas colunas de opinião. Falta um trabalho de grande investigação, embora não faltem jornalistas capazes de o fazer.

Cá por mim, fico à espera.

Carlos Pinto Coelho

«Crónica para o Número Zero da nova revista de distribuição gratuita nos estádios de futebol, "Ripa na Rapaqueca" - Novembro de 2005»

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3 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Muito obrigado pela ótima dica. Sou estudante de antropologia e agora mesmo vou encomendar este livro na Amazon.(Desculpe lá o futuro editor português).

19 de novembro de 2005 às 13:37  
Anonymous Anónimo said...

O Marcelo Rebelo de Sousa também escreve nesta revista. Os intelectuais foram seduzidos pela estupidez futebolísitca ou para ganharem as boas graças do povão?

20 de novembro de 2005 às 14:16  
Anonymous Anónimo said...

Felicito-o vivamente pela atitude corajosa e cívica de escrever este artigo numa revista a ser distribuída em campos de futebol. E como a revista é gratuita, é possível que tenha muitos leitores, o que ajuda à causa.

20 de novembro de 2005 às 20:28  

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