3.2.06

Acontece…

O marido da senhora homossexual (*)

HÁ UMA HISTÓRIA divertida e verdadeira que vem num manual de jornalismo espanhol para ilustrar como a televisão pode ser o mais traiçoeiro dos meios de informação. Uma jovem espanhola muito conhecida por se assumir homossexual e defender a igualdade de estatutos legais entre os géneros, participou num debate televisivo que foi um sucesso de audiências. Durante mais de hora e meia, como se esperava, ela insistiu na legitimidade do amor e da vida sexual entre mulheres e citou frequentemente o seu próprio exemplo de pessoa feliz e realizada, vivendo com uma companheira.


No dia seguinte, numa pequena cidade onde essa mulher nascera, creio que no norte do país, a mãe da lésbica encontra uma amiga no autocarro e ambas conversam sobre o programa da véspera.


- A tua filha pôs-se uma linda mulher.

- É verdade, e além disso está bem na vida, é uma boa profissional. Tenho muito orgulho nela.

- Ontem estava tão bem vestida… Viste aquela saia azul, os sapatos italianos… aquele brinco esmeralda que lhe ficava a matar… e o cabelo, como era encantador aquele penteado… assim solto…

E a amiga demorou-se longamente nos pormenores da roupa, das mãos e das unhas, demonstrando à saciedade que tinha visto com a maior atenção a presença televisiva da jovem. Até que, finalmente, pergunta:

- Diz-me… a tua filha tem marido?… E tem filhos? Já és avó?


Como disse, isto parece que aconteceu realmente e serve para uma longa reflexão sobre como o conteúdo das mensagens em televisão pode ser prejudicado por uma infinidade de ruídos visuais, que distraem um espectador menos atento ou menos culto. Mas não é isso o que hoje aqui me importa.

Os últimos dias trouxeram um inesperado turbilhão de boas notícias para Portugal. As nossas escolas já estão, na sua totalidade, ligadas à Internet de banda larga (primeiro lugar no pódio europeu), o porto de Sines vai entrar no ranking ibérico, a Volkswagen traz para Setúbal o fabrico de um topo de gama, o mais prestigiado centro de ciência e tecnologia do mundo, o MIT, aceitou vir instalar pólos de investigação em Portugal (não um, mas três), o patrão da Microsoft veio a Portugal entregar um cheque gordo para a formação de um milhão de pessoas (que diabo! Um milhão é muita gente, num país que tem menos população do que a cidade de Londres!), e há mais uma dezena (!) de outros anúncios de investimentos, confiança, vontade de acreditar.


Uff! Depois de uns anitos de borrasca, as coisas começam a compor-se, não? Parece clarinho, não é? Pois não é, não senhor. Pelo menos para alguns.


Depois de duas semanas consecutivas destas boas novas quase diárias por toda a parte – jornais, rádios, televisões – jantei com um amigo, português como eu, residente em Portugal como eu, sessentão como eu e adepto do Belenenses como eu. Alturas tantas, a conversa caiu neste assunto. Ele, azedo e encrespado como em dia de derrota no Restelo. Eu sem perceber: Homem! São boas perspectivas ou não são? E ele: Nada disso, pá, eu cá já não vou em cantigas, isto são os gajos (ele queria dizer os políticos) a meter areia nos olhos da malta, a mim não me papam. Ainda não está nada assinado, vais ver que é tudo fita, é o costume, Portugal não tem solução, pá! Claro que, com paciência e atenção, fui fazendo perguntas: Então achas que o Volkswagen é treta, o Bill Gates veio cá gozar com a malta, os cientistas prémios Nobel que trabalham no MIT não são tão bons como isso? E ele: tudo tretas, pá. O que eu sei é que a gasolina já subiu de preço uma pipa de vezes este ano, isso é o que eu sei! E eu: isso é verdade, mas o resto também é!


Fomos por ali, neste diálogo de surdos, até que cheguei a essa maravilha de um milhão de alunos das escolas portuguesas já poderem entrar no mundo inteiro, todas as manhãs, pela Internet de banda larga. E esta, pá, esta também é treta? Atiro-lhe eu. Então o meu amigo, muito composto, muito grave e solene, fez uma pausa e responde: Achas que é essa m… que me vai aumentar o vencimento ao fim do mês?

Calei-me, olhei para ele e apeteceu-me perguntar: olha lá, pá, e achas que a lésbica tem marido e vai ter filhos?

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(*) Publ. no «Ripa na Rapaqueca» de 3 Fev 06

3 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Bem arrancada, sim senhora. Governar os portugueses deve ser uma seca se todo o tamanho! O que o dr. Salazar deve ter sofrido, pobrezito...

4 de fevereiro de 2006 às 19:54  
Anonymous Anónimo said...

Chego a casa depois de mais uma viagem (trabalho nos aviões) e venho sempre ao sorumbático saber das fofocas. E claro se há textos deste CPC que não há meio de voltar a ver na TV. Mas um dia chego e vejo finalmente outra vez o homem! Entretanto, bela crónica esta sim senhor.

7 de fevereiro de 2006 às 00:32  
Anonymous Anónimo said...

Muitos parabéns a crónicas "tão bem tiradas".
É bom ler coisas daqui e dali, desse Portugal à beira mar plantado.
Tenho saudades do Acontece.

JBC

8 de fevereiro de 2006 às 13:14  

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