Parábolas e Parabólicas
NOS MANUAIS escolares portugueses houve um tempo em que era hábito acabar as demonstrações com a sigla «c.q.d.». A moda passou um pouco de moda; e por uma razão simples: as demonstrações rareiam no ensino básico e secundário. Como não se pode terminar o que não se começa, a marca de fim de demonstração tornou-se menos popular. Mas ainda há quem escreva «c.q.d.» — «como queríamos demonstrar», pois claro! À entrada da universidade, há alunos que reconhecem essa sigla, embora não todos.
É pena que se demonstrem poucos resultados e seria bom que, pouco a pouco, na própria escolaridade básica, os alunos se habituassem a seguir o raciocínio estruturado de uma demonstração. O ensino da matemática não pode ser só o enunciado de teoremas e sua prova. Mas é importante que, desde cedo, os jovens comecem a perceber que os teoremas não são bizarrias de matemáticos, mas sim uma forma de organizar os resultados. E que comecem também a perceber que há uma forma típica de estruturar o raciocínio dedutivo, partindo de uma hipótese e chegando a uma tese através de uma sequência lógica de passos. Finalmente, será útil que vejam que há vantagens em anunciar o fim de uma demonstração.
Tudo isto é mais do que uma simples formalidade. É bom que os estudantes se habituem a perceber e registar os pressupostos de um raciocínio, a enunciar claramente as conclusões e a mostrar onde pára uma argumentação. Quando lermos os discursos de muitos políticos, agentes educativos e intervenientes na vida pública, reparamos que há falhas de lógica que radicam no afastamento destes bons hábitos. Expressões tão usuais como «isto prende-se com» ou «até por que» são mais do que tiques de linguagem: são vícios de raciocínio. O «prende-se» é tão vago que nada diz e o «até por que» é usado como argumento principal, quando pressupõe que não o é. O ensino da matemática pode ajudar a pensar. Mas é preciso que se proceda com rigor e que se vá até ao zénite do raciocínio abstracto, que é a demonstração.
Tudo isto é trabalho árduo, que demora anos e envolve gerações de professores e alunos. Uma coisa mais simples, contudo, é escolher uma boa notação. E «c.q.d.» é péssima! Porquê aportuguesar o célebre «q.e.d.»?
Há quem já não se lembre, mas houve tempos em que na escola se usava «q.e.d.» para marcar o fim de uma demonstração. José Sebastião e Silva usava-a e continuou a usá-la nos textos da reforma do ensino liceal que dirigiu no fim dos anos 60.
Os estudantes que se habituaram a ver essa sigla, estão mais habilitados para entender muitas coisas. E não só de matemática.
Saiu há pouco tempo um livro de Pacheco Pereira intitulado «Quod Erat Demonstrandum: Diário das Presidenciais». O autor julgaria que todos os leitores perceberiam o seu título, mas enganou-se redondamente. Hoje pouca gente sabe o que essa sigla significa. E é lamentável que os próprios estudantes de matemática não a conheçam.
Houve tempos em que se pensou que usar palavras portuguesas tornaria a ideia mais clara e mais fácil de memorizar para os estudantes. É pouco provável. Pode ser bem divertido explicar numa aula que «q.e.d.» significa «quod erat demonstrandum», o que é o mesmo que dizer «que é aquilo que queríamos demonstrar» ou «como queríamos demonstrar».
Pacheco Pereira não foi o primeiro a inspirar-se nesta expressão latina para compor o título de um livro. O físico norte-americano Richard Feynman fê-lo antes, tal como o dramaturgo Peter Parnell. Uma busca na Amazon revela 449 livros com «q.e.d.» no título, subtítulo ou outro campo. No célebre Candide, Voltaire coloca a sigla na boca do optimista Pangloss. No romance The Tommyknockers, o popular escritor norte-americano Stephen King usa-a várias vezes. Desconhecê-la é pois uma limitação. E é essa limitação que o aportuguesamento de uma expressão universal cria. Quem terá tido esta ideia?
Há outras escolhas na notação matemática que podem ser igualmente decisivas. Uma das mais infelizes, na opinião do autor desta crónica, é a escolha de «injectiva» em detrimento de «biunívoca», para classificar uma aplicação ou função que tem sempre imagens diferentes com argumentos diferentes. É certo que esta designação fazia sentido como parte de um conjunto de termos inventados pelo grupo Bourbaki. Nesse quadro, havia as classificações «injectiva», que já se explicou, «sobrejectiva», que designa uma aplicação em que o conjunto imagem ou contradomínio coincide com o conjunto de chegada, e «bijectiva», que designa uma função simultaneamente injectiva e sobrejectiva. Perceber a diferença entre todas estas definições é essencial para o domínio do conceito de função e é pena que no Ensino Secundário nem sempre se clarifiquem todas estas ideias.
É certo que as designações são muito arbitrárias. Neste como noutros aspectos, os anglo-saxónicos têm a vida simplificada. Como possuem uma língua muito rica em proposições, falam em «onto» para sobrejectiva.
Como são despretensiosos e gostam de simplificar a linguagem, usam a expressão «one to one» para injectiva.
Tudo isto seria secundário se não tivesse efeitos na vida cultural dos estudantes. Nos alunos acabados de chegar à universidade há muitos que desconhecem o termo «biunívoco» e têm uma ideia mais ou menos precisa do que «injectivo» quer dizer. É triste, pois o primeiro termo deveria ser parte do vocabulário geral, enquanto o segundo poderia constituir apenas uma alternativa ao primeiro, conhecida somente pelos que estudassem matemática. Isso mesmo o reconhecem os dicionários da língua portuguesa, que habitualmente incluem uma entrada para «biunívoco», mas não para «injectivo».
Será interessante ver o que preconizava Sebastião e Silva. No seu compêndio para a reforma do ensino pré-universitário dos anos 1960, define aplicação biunívoca e apresenta o termo «injectiva» incluído em «outras maneiras de dizer» (págs. 188–189 da edição GEB de 1975, 1º volume, 1º tomo). O bom senso pedagógico do grande matemático português não vingou. Acabaram por se incluir os termos mais específicos e esquecerem-se os mais comuns. Passadas algumas décadas, a situação é ainda mais grave. Restam apenas resquícios do antigo rigor. Esquecem-se os termos mais comuns e esquecem-se os termos menos comuns...
Basil Bernstein (1924–2000), conceituado sociólogo que se dedicou ao estudo da educação, preocupava-se com os códigos de linguagem dos estudantes. Sublinhava que os limites de linguagem de alunos oriundos de grupos minoritários e marginais constituíam obstáculos ao seu acesso à cultura letrada. Mas a sua perspectiva não consistia em manter limitados esses códigos, como muitos defendem. O que Bernstein defendia era que se trabalhasse para a elevação de todos os jovens à compreensão dos termos e conceitos abstractos que fazem parte da linguagem culta. Como afirmava, «elaborated codes give access to universalistic orders of meaning».
Desconhecer a sigla «q.e.d.» ou o termo «biunívoco» é também um obstáculo ao acesso à cultura letrada. Não deveríamos nós, professores de matemática, preocupar-nos?
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Adaptado de «Gazeta de Matemática»
2 Comments:
O artigo é muito interessante, como todos os de N. C. Mas julgo que a expressão correcta é «até porque» e não «até por que».
Ed
Muito bom artigo, se bem que não o acompanho na nostalgia do biunívoco (termo que nunca usei), dando-me bem com o injectivo. Mas concordo que "one to one" é francamente atractivo ("um para um" ?).
Foi pena por falta de espaço não elaborar no título do livro de Feynman. Para quem não saiba,"QED" é um trocadilho com o nome da teoria que é explicada no livro "QED: Quantum ElectroDynamics", electrodinâmica quântica, a teoria quântica para os campos electromagnéticos.
Possivelmente o próprio nome da teoria já foi inspirado no trocadilho, não sei quem é que baptizou a teoria, ou como, mas é impossível a coincidencia não ter sido uma forte motivação.
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