A ÚLTIMA LIÇÃO DE UNAMUNO (*)
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No estrado do salão nobre, além do reitor, Miguel de Unamuno, tomaram lugar a mulher de Franco, Carmen Polo, o próprio Millán Astray e o bispo de Salamanca, Pla y Daniel, que publicara em Setembro uma carta pastoral proclamando que o levantamento nacionalista, embora assumisse «a forma externa de uma guerra civil», era «na realidade uma Cruzada». Na audiência, notáveis do Movimiento e membros da Falanje pontuavam a sessão com saudações fascistas ao retrato de Franco e o grito dos legionários, «Viva la muerte!», a que o sinistro e patético Millán Astray respondia com todo o vigor.
Unamuno tomou a palavra e disse: «Conheceis-me bem e sabeis que sou incapaz de permanecer em silêncio. Por vezes, ficar calado equivale a mentir. Porque o silêncio pode ser interpretado como aquiescência». Criticou sem rodeios «o necrófilo e insensato grito» que acabara de ouvir. Lembrando que era perito em paradoxos, afirmou que «este ridículo paradoxo» lhe parecia «repelente». Salientando que o general Millán Astray era um inválido de guerra, como «também o foi Cervantes», não hesitou em destrinçá-los a dedo: «De um mutilado que careça da grandeza espiritual de Cervantes, é de esperar que encontre um terrível alívio vendo como se multiplicam à sua volta os mutilados».
Foi então que Millán Astray expeliu o seu grito irracional e obsceno. Falangistas e militares sacaram das pistolas e uma delas foi apontada à cabeça de Unamuno. O que não impediu o reitor da Universidade de Salamanca de concluir o seu corajoso discurso:
«Este é o templo da inteligência. E eu sou o seu sumo sacerdote. Estais a profanar o seu recinto sagrado. Vencereis, porque vos sobra a força bruta. Mas não convencereis. Para convencer há que persuadir. E para persuadir seria necessário algo que vos falta: razão e direito na luta. Parece-me inútil pedir-vos que penseis na Espanha…Tenho dito».
Franco lamentou não terem morto Unamuno logo ali. Expulso da universidade e submetido a prisão domiciliária, morreu no final de 1936. O filósofo de Del sentimiento trágico de la vida era profundamente católico. Admirava Camilo, Eça, Antero, Pascoaes e tantos outros que evoca na obra Por terras de Portugal e da Espanha. Ortega y Gasset escreveu, em elogio fúnebre:
«A voz de Unamuno ecoava sem parar por toda a Espanha há um quarto de século. Ao cessar para sempre, temo que o nosso país sofra uma era de atroz silêncio».
Assim foi. Sobreviveu a obra. E uma admirável lição de coragem.
(*) Crónica de Alfredo Barroso no «DN» de hoje (não está online), aqui transcrita com sua autorização.
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2 Comments:
Algo não bate certo. O grito do fascista foi antes ou durante o discurso de Unamuno?
Julguei que tinha ficado claro, no meu texto, que o grito de Millán Astray («Muera la inteligência! Viva la muerte!») foi proferido para interromper o discurso de Miguel de Unamuno, quando este criticava o grito dos legionários («Viva la muerte!»), que os membros do «Movimiento» e da Falange iam repetindo entusiasticamente, e a que Millán Astray correspondia, durante os discursos pró-franquistas que antecederam o de Miguel de Unamuno, o qual, como reitor da Universidade de Salamanca, proferiu o discurso de encerramento da cerimónia.
Já agora, vale a pena indicar as fontes históricas e literárias de que me socorri para escrever esta crónica:
- «A Guerra Civil de Espanha», de Hugh Thomas (1961), editada em Portugal pela «Ulisseia»;
- «La Guerra Civil Española», de Antony Beevor (versão de 2005, a partir da versão de 1982, que foi amplamente revista, alterada e aumentada), agora editada em Espanha por ‘Memoria Critica’;
- «A Concise History of the Spanish Civil War», de Paul Preston (1999), reeditada em Espanha por «DEBOLSILLO», em 2003, com o título «La Guerra Civil Española»;
- «Spanish Civil War», de Helen Graham (2005), editada em Espanha pela «Espasa Calpe, em 2006, com o título «Breve Historia de la Guerra Civil»;
- «Introducción a Miguel de Unamuno», de Paulino Garagorri («Alianza Editorial», 1986);
- «Por tierras de Portugal y de España», de Miguel de Unamuno (Madrid, 1911), editada em Portugal pela «Assírio & Alvim», em 1986, com o título «Por terras de Portugal e da Espanha» (tradução e notas de José Bento)».
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