14.12.06

Ser “gay”

NÃO GOSTO que me chamem parvo. Suponho que ninguém goste.
O termo vem, ao que parece, duma pequenez de pensamento, mais que duma qualquer burrice crónica ou momentânea.
Pois ser parvus era ab initio, ser pequeno.
Por extensão - e sabe-se lá que derivâncias do insulto através dos tempos - tornou-se uma classificação de pequenez mental.
Do mesmo modo, não gosto - talvez por tal epíteto me expor ao mais íntimo saber de mim…- que me chamem bisonho, triste, enfadante, sem gosto pela vida, nem pelas margens bonitas do viver.
Porque ser triste seria o contrário de amar a vida.
O inverso do sonho e da cartomância de converter esta passagem em coisa de gozo, estilo, sabedoria e exaltação.
Ora eu prezo-me de, dentro de um sentir naturalmente crítico e atento, optar pela positividade das escolhas. Eu amo a vida.
Nunca Dionísio demais; nunca Apolo demais. Mas amo.
E assim vou tentando todos os dias achar equilíbrios e ter alguma nobreza no sentir. É assim que creio; assim que sei viver, falar, ser amigo e prosseguir a cada dia.
Acontece que provenho de uma geração que se habituou a fazer das tristezas bazófia e a edificar a alegria possível, mesmo quando o quadro negro de um país adiado e bolorento indicava mesquinhez, parvoíce, desconfiança, denúncia, nepotismo salazarento e guerra injusta.
Não sou portanto alegre. Não podia.
Aliás, ser (permanentemente?) alegre, só um imbecil.
É esse um outro aspecto. É que o pessoal decidiu passar a ser gay. Agora fico sem perceber. Meu Deus! Significará isso ser permanentemente gay? Não é possível! Sinceramente, não acredito. Só poderia ser sempre gay um tolinho, um coitado, sem sentido de análise nem percepção da vida. Um pateta alegre. Um tonto.
Mas também me sinto insultado e ofendido no lado mais criativo e existencial de mim, se me chamarem triste, como quem diz sem graça, nem alegria de viver.
No tempo em que aprendi inglês a palavra gay queria dizer alegre. Jovial. Contente. O John estava gay porque o avô lhe tinha dado um bolo.
E nenhuma leviandade ou concupiscência se levantava no gesto ou no significado de tal constatação. A frase era assim mesmo.
Gay era pois, como pertence, suponho, um termo de passagem, uma adjectivação perspicaz e justificada de um estado de espírito mais ou menos transitório de felicidade.
Mais tarde o jovem John voltaria seguramente a ter fome; a sua satisfação era portanto, pouco duradoura, efémera, passageira.
Acontece que, ao reivindicar para si o exclusivo epíteto – mais! - apropriando-se do próprio nome como forma de designação de uma preferência sexual, todos os outros que a não perfilhem são indelevelmente chamados de tristes.
Isto é, António é gay, leia-se alegre, feliz.
João não é gay, logo é triste e um grandessíssimo chato.
Não creio que fosse intencional mas se uma comunidade - não gosto do termo, dá uma ideia de reserva ecológica ou tribal, mas enfim…- decide passar a designar-se por, ou passar a ser gay, isso presume que classifica implicitamente todos os outros como sad.
Acreditem se quiserem. Nada me move contra a opção onomástica em si, entretanto galopante e universal.
Nada me move contra a preferência. Nada me move contra gente de fino recorte literário, supino gosto e elegância, grande educadores, artistas, embaixadores, poetas que pertençam, incorporem e de gusto integrem essa forma alternativa de viver. Fui e sou amigo de tantos. Fiel, antigo e sincero.
Mas não gosto que me modifiquem sem meu consentimento o significado das coisas, pronto.
Bem basta já a modesta e simpática bicha que foi erradicada e trocada injustamente pela equívoca e assexuada palavra fila. Ora toda a gente sabe que quando se faz uma bicha para ser atendido em qualquer parte, só por milagre acontece uma fila direita.
O caudal de gente lá se vai organizando, contorna os corredores , sai do edifício, dá a volta ao quarteirão, enfim, neste divertido país a coisa até dá para conviver, voltear, contar anedotas para não exasperar.
A palavra fila tem uma consonância geométrica, militar. Coisa de régua e esquadro... Nah!... Nunca acontece. Que força oculta nos proibiu o uso popular e genuíno da palavra bicha? Quando os telejornais começaram a falar em filas na estrada, estranhei. Quem tinha sido o revisor de tal neologismo? A palavra bicha existe. É portuguesa. É pura. É nossa.
Relembro aliás, também, com saudade, a expressão cómico-séria, revirando os olhos esbugalhados, que o actor Ribeirinho deu ao dizer bicha, embora noutro sentido, num daqueles velhos filmes portugueses a preto e branco, não lembro qual.
-Está pior que uma bicha! – tanto quanto recordo.
Expressão engraçada. Genuína. Pura. Sem malícia. Porquê calá-la?
Foi proibido ser gay? Foi proibido fazer bicha?
Não? Então…fica combinado, amigos. Todos os dias que as coisas me correrem bem, eu estarei gay. Todos os dias em que as coisas me correrem mal eu estarei uma verdadeira bicha.
Continuarei também ordeira e desesperadamente a fazer bichas em todo o lado.
Sexualmente, porém, a coisa mantém-se inalterada: - continuo a pertencer a essa minoria reaccionária. A tal gente conservadora e triste que prolonga a espécie, num absurdo desvario de consciência, gostando ainda e muito do sexo oposto.
Os tais que garantem que amanhã ainda exista gente pelo Mundo.
O que, como é sabido, só nos traz problemas e chatices.
Parvoíce minha, portanto.
Pequenez.
_
PEDRO BARROSO

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2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Certeira!

Parabéns pela crónica!

15 de dezembro de 2006 às 09:46  
Anonymous Anónimo said...

Já me fartei de rir!

Espero ver mais vezes o P. Barroso neste interessante blogue.

15 de dezembro de 2006 às 22:40  

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