19.1.07

CENTELHAS DE GUERRA

FOI HÁ 90 ANOS, em Agosto de 1917, que o Papa Bento XV apelou aos dirigentes dos países envolvidos na Grande Guerra - que já grassava há três sangrentos e terríveis anos - para que pusessem termo ao «inútil massacre» e se dispusessem a construir uma paz duradoura. Mas, nesse mesmo ano, um sentimento aparentemente incompreensível de superioridade moral e civilizacional impeliu o grande escritor alemão Thomas Mann a considerar a guerra como «uma purificação, uma libertação, uma enorme esperança». Com insuportável arrogância intelectual, afirmou: «A vitória da Alemanha será a vitória da alma sobre o número. A alma é oposta ao ideal pacifista da civilização». E formulou esta questão absurda: «Acaso não será a paz um elemento de corrupção civil?».
Já durante a República de Weimar (1919-1933), Thomas Mann iria abandonar as ideias conservadoras, nacionalistas e anti-parlamentares, denunciando com presciência e coragem o perigo da ascensão de Hitler ao poder. Mas aquilo que escreveu em 1917 era «uma clara imagem da teoria essencialmente militarista alemã, segundo a qual a guerra enobrece». Sublinha-o a historiadora norte-americana Barbara Tuchman (1912-1989) no admirável livro que publicou em 1962 - The Guns of August - sobre os trágicos trinta e um dias do Verão de 1914 que mudaram a face do mundo, pondo definitivamente termo ao século XIX e iniciando «o terrível século XX», como Churchill lhe chamou.
Chefes políticos ineptos e medíocres, servidos por generais arrogantes e obtusos, deram corpo a interpretações, por vezes distorcidas e oportunistas, de teorias filosóficas sobre a natureza do homem, a essência da guerra e as culturas nacionais. Na Alemanha, as teorias de Clausewitz e a imagem de Aníbal e dos elefantes, na «batalha decisiva» de Canas, serviam para explicar o Plano Schliefen. Ora, «o que forjou o plano de Schliefen não foi Clausewitz, nem sequer a batalha de Canas, mas sim o egoísmo acumulado que dominava o povo alemão» - afirma Barbara Tuchman. Foram epígonos de Fichte, Hegel e Nietszche que alimentaram a ilusão de «um povo alemão eleito pela Providência» para conduzir o mundo a «um glorioso destino de apaixonante Kultur», no qual só «o super-homem se elevaria acima do âmbito vulgar e corrente». Em França, foi a ideia de «élan vital», enunciada pelo filósofo Henry Bergson, que serviu de base à doutrina militar da «offensive à outrance», elaborada pelo general Foch, cerne do medíocre Plano 17, que descurava por completo a guerra defensiva. Clausewitz revolveu-se na tumba.
Tão ilusório era o Plano 17 como o Plano Schliefen. É o fracasso de ambos que prolonga o massacre, «enquanto da torre do orgulho na cidade / a morte gigantesca olha com desprezo». Versos de Edgar Allan Poe que abrem outro admirável livro de Barbara Tuchman sobre os primórdios do século XX: The Proud Tower. O paralelismo com este não menos conturbado início do século XXI é inevitável. A arrogância civilizacional e o apelo à força bruta estão à vista. Uma centelha basta para desencadear a loucura.
«DN» - 19.Janeiro.2007

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1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Hummm... Esta referência ao Thomas Mann virá a propósito do Cavaco (e das suas confusões com o Thomas More)?

Olhe que o homem, na Índia, acabou de recebeu o doutoramento Honoris Causa em LITERATURA!(Os indianos têm, pelos vistos, um senso de humor muito apurado...)

Eduardo Ramos

19 de janeiro de 2007 às 08:26  

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