DE DOUTOR POR CINCO TOSTÕES A QUINHENTOS ESCUDOS PARA UM ENGENHEIRO NA MENDICIDADE
SOU DO TEMPO em que se era doutor por cinco tostões. Ou seja, quando os bancos não tinham ainda acabado com os grandes cafés de Lisboa e estes tinham altifalantes para chamarem os seus clientes ao telefone, ouvia-se frequentemente chamar o senhor-doutor-fulano-de-tal. E este levantava-se e, perante a admiração respeitosa e quase geral dos circunstantes, ia atender a chamada ao balcão do café, que por muitos era assim transformado numa espécie de escritório.
Era, portanto, fácil ser-se doutor, engenheiro ou arquitecto. Não que o acesso ao ensino fosse socialmente facilitado. Mas não havia certamente quem não tivesse cinco tostões, que era o preço duma chamada telefónica, e um amigo ou amiga que se prestasse a esse favor.
Hoje, em Lisboa, já não se faz tanto aquela vida de café. E deixou de ser costume chamar-se assim as pessoas ao telefone. Mas nem por isso diminuiu o número de doutorados. Aliás, com a proliferação das universidades privadas e com os cursos tão acelerados que há por aí, naturalmente que o número de diplomados, bacharéis e de licenciados ou de simples frequentadores duma qualquer escola média ou superior que se autopromovem ou se deixam promover não diminuirá, certamente, antes pelo contrário.
Aliás, penso que tudo isto é humano. Nunca vi um tenente-coronel corrigir quem lhe chame coronel, mas ai daqueles que o tratem por major... E neste país de engravatados é natural que os das gravatas de poliéster receiem ofender os das gravatas de seda. E, na dúvida, vá lá de pôr um «doutor» antes do nome, que só cai bem.
Por vezes, sujeitam-se a uma correcção:
- Doutor, não. Sou engenheiro.
Mas digam-me lá se já ouviram alguém dizer.
- Não sou doutor, sou só licenciado.
É o dizes. E foi assim que o doutor passou em Portugal à categoria de nome próprio, havendo no nosso país mais doutores do que Josés ou Antónios.
Vem tudo isto a propósito de eu ter encontrado ontem e ficado assim a conhecer mais um engenheiro.
Foi na rua, em Lisboa, o jovem tinha bom aspecto, a roupa denotava boa qualidade, ainda que visivelmente usada e um pouco desalinhada, e dirigiu-se-me com firmeza e grande resolução:
- O senhor desculpe. Pode pensar o que entender e reagir conforme os seus princípios ou os seus sentimentos, que eu compreendo perfeitamente, qualquer que venha a ser a sua decisão. Sou engenheiro, acabei o curso do Técnico (Instituto Superior Técnico) há um ano e ainda não consegui arranjar um emprego. Como não estou disposto a continuar a ser um encargo para a minha família, resolvi independentizar-me, mas nem sempre passo bem com os trabalhos ocasionais que vou conseguindo arranjar. Estou, portanto, a fazer-Ihe um pedido ontem não consegui jantar e hoje ainda não ingeri qualquer alimento. Pode e quer o senhor contribuir com alguma coisa para uma refeição ligeira que eu possa tomar?
Não sei nem me interessa se a história que este rapaz me contou é verdadeira. Engenheiro ou não, quem fala assim não é gago e o recorte do seu português e a fluência do seu discurso eram suficientemente bons para que esta atitude não fosse uma violação para a sua própria dignidade.
Dei-Ihe quinhentos escudos porque hoje não é fácil almoçar por muito menos se se deseja uma refeição quente. E fiquei a pensar desde então em coisas tão estranhas como estatuto social e inflação. É que apesar de todos os pernósticos que somos obrigados a aturar temos de reconhecer uma grande diferença entre o tempo em que se podia ser doutor por cinco tostões e os dias de hoje, em que se dá quinhentos escudos a um engenheiro na mendicidade.
Era, portanto, fácil ser-se doutor, engenheiro ou arquitecto. Não que o acesso ao ensino fosse socialmente facilitado. Mas não havia certamente quem não tivesse cinco tostões, que era o preço duma chamada telefónica, e um amigo ou amiga que se prestasse a esse favor.
Hoje, em Lisboa, já não se faz tanto aquela vida de café. E deixou de ser costume chamar-se assim as pessoas ao telefone. Mas nem por isso diminuiu o número de doutorados. Aliás, com a proliferação das universidades privadas e com os cursos tão acelerados que há por aí, naturalmente que o número de diplomados, bacharéis e de licenciados ou de simples frequentadores duma qualquer escola média ou superior que se autopromovem ou se deixam promover não diminuirá, certamente, antes pelo contrário.
Aliás, penso que tudo isto é humano. Nunca vi um tenente-coronel corrigir quem lhe chame coronel, mas ai daqueles que o tratem por major... E neste país de engravatados é natural que os das gravatas de poliéster receiem ofender os das gravatas de seda. E, na dúvida, vá lá de pôr um «doutor» antes do nome, que só cai bem.
Por vezes, sujeitam-se a uma correcção:
- Doutor, não. Sou engenheiro.
Mas digam-me lá se já ouviram alguém dizer.
- Não sou doutor, sou só licenciado.
É o dizes. E foi assim que o doutor passou em Portugal à categoria de nome próprio, havendo no nosso país mais doutores do que Josés ou Antónios.
Vem tudo isto a propósito de eu ter encontrado ontem e ficado assim a conhecer mais um engenheiro.
Foi na rua, em Lisboa, o jovem tinha bom aspecto, a roupa denotava boa qualidade, ainda que visivelmente usada e um pouco desalinhada, e dirigiu-se-me com firmeza e grande resolução:
- O senhor desculpe. Pode pensar o que entender e reagir conforme os seus princípios ou os seus sentimentos, que eu compreendo perfeitamente, qualquer que venha a ser a sua decisão. Sou engenheiro, acabei o curso do Técnico (Instituto Superior Técnico) há um ano e ainda não consegui arranjar um emprego. Como não estou disposto a continuar a ser um encargo para a minha família, resolvi independentizar-me, mas nem sempre passo bem com os trabalhos ocasionais que vou conseguindo arranjar. Estou, portanto, a fazer-Ihe um pedido ontem não consegui jantar e hoje ainda não ingeri qualquer alimento. Pode e quer o senhor contribuir com alguma coisa para uma refeição ligeira que eu possa tomar?
Não sei nem me interessa se a história que este rapaz me contou é verdadeira. Engenheiro ou não, quem fala assim não é gago e o recorte do seu português e a fluência do seu discurso eram suficientemente bons para que esta atitude não fosse uma violação para a sua própria dignidade.
Dei-Ihe quinhentos escudos porque hoje não é fácil almoçar por muito menos se se deseja uma refeição quente. E fiquei a pensar desde então em coisas tão estranhas como estatuto social e inflação. É que apesar de todos os pernósticos que somos obrigados a aturar temos de reconhecer uma grande diferença entre o tempo em que se podia ser doutor por cinco tostões e os dias de hoje, em que se dá quinhentos escudos a um engenheiro na mendicidade.
Lisboa, 1987
Etiquetas: JL
2 Comments:
É um facto que os títulos de Dr. e Eng. são muito cobiçados. A prova disso é que muitos dos nossos gestores e homens públicos sentem-se mal quando não possuem um desses títulos e são até capazes de os inventar.
Na Caixa Geral de Depósitos há dois administradores, Maldonado Gonelha e Armando Vara, que ostentam o título de Dr. e são tratados como tal, embora persistam fortes dúvidas acerca da autenticidade das licenciaturas que invocam.
O próprio Primeiro Ministro, José Sócrates, exibe um título de Eng. mas há quem afirme peremptoriamente que ele não possui nenhuma licenciatura em engenharia.
Por que razão estes homens não são capazes de admitir, se for o caso, que não tiraram nenhum curso superior?
Se muitos dos autênticos Dr. e Eng. já são perigosos na política, imagine-se o que se pode esperar de homens que fazem preceder o seu nome de um título falso.
Patrício
Conta-se que há muitos anos, no Nicola, sucedeu o que passo a descrever.
Ouve-se, em alta-voz, um empregado atrás do balcão, com o auscultador numa das mãos:
"Dr. José Bonifácio Relvas ao telefone, por favor! Está em linha o seu irmão Francisco."
Eis que, num repente, um indivíduo se levanta da cadeira, pega na maleta "James Bond" e vai a correr para o balcão, para atender a chamada. Ao chegar perto do balcão, tropeça nos pés dum cliente mais descuidado, cai com estrondo e a malinha "James Bond" desliza pelo chão e embate com estrondo no balcão e abre-se, espalhando pelo chão duas colheres de pedreiro, um nível, o fio de prumo..."
O Zé Bonifácio nunca mais foi visto no Nicola.
Zeca Pedreiro
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