13.1.07

Saúde pública

Confesso. Eu até gosto de explorar limites.
Horizontes, modos, ideias, sensibilidades, paisagens, acordes de viver diferente.
Mas há limites para os limites.
Padecendo, no outro dia, de fortes dores de estômago, pelas agruras de uma úlcera que, de vez em quando, enraivecida, me ataca em dias de desgosto e má fortuna, fui, na conformidade, confrontado com a necessidade de recorrer aos serviços de um Hospital – quero crer que exista mesmo… – de Almada. Garcia da Horta, o velho naturalista português lhe deu nome, num esforço de síntese e celebração evocativa mais que merecida.
Apesar de possuidor de um cartão supostamente de privilégio, achei por bem tentar resolver a questão como tantos outros milhões de cidadãos nos Hospitais da rede pública. Lembrava-me que em tempos usei um outro em que me salvaram de uma apendicite já em fase tardia e decisiva e onde fora tratado com normalidade, eficácia e correcção.
Apesar de promessa pronta de um médico em casa em cerca de duas horas e meia – através do tal sistema de saúde que não me paga aqui para lhe fazer publicidade – eram cerca das onze e meia da manhã quando decidi cancelar o domicílio combinado e, conforme acreditei, ir para o Hospital de Almada, “para ser atendido mais depressa”.
Erros meus, má fortuna e dor ardente em minha perdição se conjuraram.
Entrando no sobredito cujo edifício, depois de procurar pela urgência, as dores agudizavam-se, mas eu pensei:
-“Meu Deus, uff… cheguei… estou salvo!” – num súbito acesso de religiosidade interesseira que me perdoarão e eu próprio também.
Seguiu-se um curioso filme de Fellini, com extensão de Manoel de Oliveira nos seus melhores dias.
Havia entrado em Meca e não sabia.
Bicha para a pré-triagem. Meia hora depois, um primeiro senhor doutor, rapaz jovem, um pouco desconfiado de todos nós, os chatos queixosos, e aparentemente muito aborrecido de ali estar, classificaria os doentes por prioridades.
Desconhecia o processo. Apesar de muito queixoso, sempre podia ter gritado mais, se soubesse. Porque, ao que parece, este rápido e sumário processo de avaliação era muito mais determinante do que tudo o que eu alguma vez pensasse. A tal douta e elevada análise correspondia, vim depois a saber, a um papel de uma cor que determinaria a velocidade do chamamento.
Com efeito, uma vez ali entrado você converte-se em amarelo, ou verde, ou azul. Talvez haja mais cores, não sei. Um número, um nome e uma cor. Diga lá o preço certo. Rifa-se ou borrifa-se. Lotaria de dor. Entende-se ou não.
Deliro, claro. Já não digo coisa com coisa. Mas imagino.
- “ O quê?! Você só tem um dedo partido? Não tem vergonha de vir aqui incomodar? Tem de esperar homem… Ainda se fosse o braço, vá lá…”
Julguei com o discernimento que a razão permitia, mas é obvio que as dores não me deixavam analisar com a tranquilidade desejada.
O que quero dizer é que senti que tudo seria possível perante o caos que se instalou.
Eram centenas de pessoas; todas supostamente doentes incluindo uma senhora Maria Luísa não sei quê que chegou a entrar e sair umas quatro vezes da Urgência. Uma filha que passava a vida a perder a mãe. Um marido epiléptico. Tudo em sórdido convívio unidos pela espera.
Contentores de dores e aflições. Desgraças inenarráveis; não quero arrepiá-los agora.
E nada avançava. Ao que parece o meu papelinho indicava como data limite, dizem os entendidos, o magnânimo prazo de 120 minutos para me chamarem. Verde. Eu era verde. Acho. Não sei.
Mas viria a pagar em dobro sem ter direito a nada e é bem feito.
A máquina do canto ameaçava com umas sandes que deviam conter alface, acetona e mercúrio; talvez o vírus de alguma gripe desconhecida. Sinceramente não pareciam muito convidativas.
Cadeiras para os doentes… nem pensar, não chegavam. O bafo na sala era insuportável. A simpatia de uma senhora, talvez enfermeira, empertigada e malcriada era de um humor negro entre o gélido e o falsamente humano.
-“Muitas urgências…!” – desculpava-se ela. Mas não seríamos todos nós isso mesmo?! Urgências?
Vi chamar, entrar e sair todas as Hermengardas e Lucindas que há no planeta. Todos os Albertos e Joões que um microfone fanhoso é capaz de debitar.
Embora a conta gotas, verdade seja dita. E o meu nome não constava nunca. Foi por isso que, ao fim de um jejum obrigatório e de pé, em posição de tortura total para as minhas duas acompanhantes, que decidimos arriscar e partir. Buscando enfim um Hospital onde atendessem as pessoas.
Eram já quase quatro horas da tarde. Perdera 4 horas de combate à dor. Tudo podia ter acontecido.
Com efeito, partimos. Clandestinamente, após 4 horas de espera sem solução, em condições de prisão em Mogadíscio.
(Talvez, vá lá, …concedamos… em dia de visita pela UN… ou não).
Desespero total. Dois telefonemas de confirmação. E lá vamos, de novo. Em busca da saúde perdida.
Em vez de um, arrisco dizer que éramos já três doentes a abandonar aquela sala infernal.
Resumo: entrara no edifício pelas onze horas e cinquenta. Saí pelas 15 e 45.
Ah! Já me esquecia! Paguei oito euros e tal pelo atendimento que nunca existiu.
Mas tive direito a uma lindíssima pulseira em plástico personalizada.
Acho que vou mandar emoldurar.
P.S.: após chegada ao local escolhido – que não me paga para o promover… é pena – em dez minutos estava a ser atendido.
Fiz análises… e fui ficando bem melhor.
E agora? Ah! Sim, estou bem obrigado – embora medicamentado, em dieta e cheio de cautelas, como pertence…

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5 Comments:

Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

Por afectar quase toda a gente, o caso da Saúde é, talvez, aquele onde mais se nota a absoluta falta de sensibilidade do respectivo ministro (seja o actual, seja qualquer outro).

Mas o problema é geral, pois os governantes (todos e em quase todo o mundo) vivem numa realidade à parte, isolados do mundo real, e por isso alheios às dificuldades do cidadão-comum, que só conhecem de "ouvir dizer".

Alguém imagina que eles saibam o que é estar 5 ou 6h na bicha da Segurança Social?
Ou 2h nas Finanças?
Ou mesmo apenas 1h nos CTT?

Alguém imagina que eles tenham a experiência REAL de ficar a secar numa maca, num corredor de hospital?

Ou andar nos apertos dos transportes públicos em hora de ponta?

13 de janeiro de 2007 às 10:38  
Anonymous Anónimo said...

Os 14 Direitos do Doente

Desde os anos 50 que várias entidades editaram cartas com direitos dos doentes, entre elas a Organização Mundial de Saúde.

A Carta Europeia dos Direitos dos Utentes foi elaborada em 2002 pela ACN e tem a vantagem de ter sido concebida com base na realidade europeia.

Conheça os seus 14 direitos:

1-Direito a Medidas Preventivas
Todo o indivíduo tem o direito a serviços adequados com o objectivo de prevenir doenças.


2-Direito de Acesso
Todo o indivíduo tem o direito de aceder aos serviços de saúde de que a saúde dele necessita. Os serviços de saúde devem garantir igual acesso a todos, sem discriminação relativa a recursos financeiros, local de residência, tipo de doença ou a hora a que se acede aos serviços.


3-Direito à Informação
Todo o indivíduo tem o direito de aceder a todo o tipo de informação no que se refere ao seu estado de saúde, aos serviços de saúde e como usá-los, assim como de toda a investigação científica e inovação tecnológica que esteja disponível.


4-Direito de Consentimento
Todo o indivíduo tem o direito de aceder a toda a informação que o possa capacitar na participação activa das decisões respeitantes à sua saúde; esta informação é um pré-requisito para qualquer procedimento e tratamento, incluindo a participação em investigações científicas.


5-Direito de Livre Escolha
Cada indivíduo tem o direito de livre escolha de entre todos os procedimentos de tratamento diferentes e de prestadores de serviços com base em informação adequada.


6-Direito de Privacidade e de Confidencialidade
Todo o indivíduo tem o direito à confidencialidade da sua informação pessoal, incluindo informação relativa ao seu estado de saúde e diagnóstico potencial ou a procedimentos terapêuticos, assim como à protecção da sua privacidade durante o processo de diagnóstico, visitas de especialistas e tratamentos médicos e/ou cirúrgicos em geral.


7-Direito ao Respeito pelo Tempo do Paciente
Todo o indivíduo tem o direito a receber o tratamento necessário dentro de um rápido e predeterminado período de tempo. Este direito aplica-se a todas as fases do tratamento.


8-Direito à Observância/Cumprimento das Normas de Qualidade
Todo o indivíduo tem o direito de acesso aos serviços de saúde de elevada qualidade baseados nas especificações e na observância de normas precisas.


9-Direito à Segurança
Todo o indivíduo tem o direito de estar isento dos malefícios decorridos do mau funcionamento dos serviços de saúde, erros e más práticas médicas, e o direito de aceder a serviços de saúde e a tratamentos que vão ao encontro das mais elevadas normas de segurança.


10-Direito à Inovação
Todo o indivíduo tem o direito de acesso a procedimentos inovadores, incluindo procedimentos de diagnóstico, de acordo com normas internacionais e independentemente de considerações económicas ou financeiras.


11-Direito de Evitar Sofrimento Desnecessário e Dor
Todo o indivíduo tem o direito de evitar o mais possível sofrimento e dor, em cada fase da sua doença.


12-Direito a Tratamento Personalizado
Todo o indivíduo tem o direito a diagnósticos ou programas terapêuticos adaptados o mais possível às suas necessidades pessoais.


13-Direito de Queixa
Todo o indivíduo tem o direito de se queixar quando tiver sofrido danos e o direito de receber uma resposta ou outro esclarecimento.


14-Direito de Compensação
Todo o indivíduo tem o direito de receber suficiente compensação, dentro de um curto prazo razoável de tempo, quando tiver sofrido danos físicos ou morais e psicológicos causados por um tratamento dos serviços saúde.

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(Enviado por Fátima Campos)

13 de janeiro de 2007 às 11:02  
Anonymous Anónimo said...

Os doentes estão-se nas tintas para os Direitos. Querem é ser tratados!

13 de janeiro de 2007 às 11:52  
Anonymous Anónimo said...

Bernardo Moura said...
"Infelizmente é o sistema que temos."

Caro amigo, esta sua frase está incompleta.
Permita-me que acrescente algo.

"Infelizmente é o sistema que temos de pagar e pelo dobro ou triplo do valor que nos custaria se realmente funcionasse em condições"

Cumps ;-)

13 de janeiro de 2007 às 13:49  
Anonymous Anónimo said...

Ah, grande Pedro Barroso! Apareça mais vezes neste blogue, que a malta gosta do que você escreve!

Ed

14 de janeiro de 2007 às 15:19  

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