3.2.07

COR DE PÚRPURA

PEPETELA CONHECE UM CÃO que não gosta de buganvílias. Eu conheço um menino que não gosta de buganvílias por causa de um cão.
Quando o menino cresceu, gostava de admirar aquela cascata cor de púrpura que descia pelo tronco velho da árvore que fazia sombra no jardim das traseiras. A avó olhava pela janela da marquise e rejuvenescia sempre que a árvore começava a dar flor.
Mas, apesar de gostar muito da avó, o menino ficou contente quando um dia o avô disse.
- Vou arrancar a buganvília. As raízes dão cabo de tudo no jardim.
A avó chorou ao ouvir estas palavras, o menino ficou de repente triste por pensar que não ia ver mais aquela cascata cor de púrpura, mas sentiu o calor bom da vingança, sem dizer nada porque sempre lhe haviam ensinado que a vingança era uma coisa muito feia.
Quando se deitou na sua cama, o menino pensou que coisa iria o avô pôr no sítio da buganvília, porque alguma coisa tinha de pôr para cobrir o pavilhão do fundo do jardim das traseiras, que ia ficar sem aquela cabeleira cor de púrpura, que lhe caía para os olhos sempre abertos, sem persianas.
E, ao adormecer, o menino sonhou.
Apareceu-Ihe uma senhora que lhe perguntou:
- Porque estavas tu contente por o teu avô ir matar a buganvília?
- Porque um dia a buganvília enganou-me - respondeu o menino.
- Como te enganou a buganvília?
E o sonho do menino fez como os filmes no cinema e, cheio de medo, o menino voltou a estar junto da buganvília que o enganara, como se fossem aqueles o dia e a hora em que tudo acontecera.
O menino viu a menina por detrás dos vidros a olhar os rapazes que jogavam à bola na rua sem trânsito. Jogava a guarda-redes, no meio dos postes, que eram duas pastas, daquele grupo que faltara à escola.
E por ter visto a menina, o menino começou a fazer grandes defesas e a apanhar todos os remates e a atirar-se aos pés dos adversários como os guarda-redes a sério.
Quando a bola subiu demasiado, e passou por cima do muro, para o quintal da casa que ficava em frente daquela atrás de cujos vidros a menina espreitava, os rapazes ficaram por momentos sem saber o que haviam de fazer.
Decidiram-se, por fim, a tocar à porta e a pedir, por favor, a bola que, sem querer, ali tinha ido parar Ninguém respondeu. Voltaram a tocar a campainha. Nada.
Então, ficou decidido que era preciso saltar o muro e recuperar a bola.
O rapaz escolhido chegou ao cimo do muro, depois de, pé aqui, mão ali, e de (?) o terem ajudado a subir, e quando lá chegou ouviu-se uma corrente arrastar pelo chão e ladridos fortes.
- Oh, pá! É um pastor-alemão! - disse o «alpinista», com os olhos muitos abertos pelo medo.
Resolveram então tocar outra vez. Nada.
O menino olhou então, disfarçadamente, e viu que, por detrás dos vidros da casa silenciosa, que ficava mesmo em frente, continuava a menina a tudo observar.
- Eu vou – disse o menino.
No meio do jardim, por detrás do muro, havia de facto uma buganvília e um cão que tinha uma corrente ao pescoço, que arrastava e, portanto, devia estar preso atrás da árvore e logo não haveria razão para os medos que o companheiro tivera momentos antes.
- Eu vou - repetiu com uma mão nos olhos para, disfarçadamente, se certificar de que a menina ainda lá continuava. E continuava.
Escalou o muro depois de ter estado em pé, em cima dos ombros de um colega. Deixou-se cair para o outro lado e ficou quieto. Não tardou a ouvir a corrente que arrastava, como se pertencesse a uma alma penada.
O cão era grande e cinzento e parecia um cão que vira uma vez, num filme de guerra. O animal formou o salto e, à primeira, as mandíbulas levaram a parte da frente da camisola do menino, que caiu de costas, segurando a cabeçorra e a gritar tão forte, tão alto, que ainda bem que a menina estava por detrás dos vidros para não ouvir toda aquela vergonha.
Menino e cão rebolaram. Uma porta da casa abriu-se Uma Voz gritou:
- Quieto Tarik. Ah, meu malandro que o cão mata-te!
Humilhado, segurando o que restava dos calções com a pasta, olhou, à passagem, para a casa em frente e, detrás da janela, a menina sorriu-lhe.
Nesta altura, como no cinema, ou talvez ainda mais como na televisão, reapareceu a senhora, que devia ser uma locutora de continuidade dos sonhos, e perguntou ao menino:
- E porque não gostas de buganvílias?
- Porque se não fosse a árvore eu tinha sabido que o cão estava solto.
E adormeceu.
No outro dia, a avó pediu-lhe:
- Vê se convences o teu avô a não matar a nossa buganvília.
Quando a avó morreu, nesse Inverno. sentiu um grande remorso por não ter tentado salvar a buganvília. Ainda hoje não gosta muito da árvore. Mas quando vê uma, fica perdido a olhar aquela cascata cor de púrpura.
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Lisboa, 1987

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