2.2.07

Curtas-letragens

Justiça poética com telemóvel no bolso

Para o José Figueiredo e os seus maus hábitos.
NÃO GOSTO DE VENDEDORES ESPERTOS que nos tratam como se não soubéssemos patavina do que vamos comprar, como se fôssemos uns beócios à procura da maneira mais estúpida de gastar o dinheiro que aparentamos e se calhar não temos. Não gosto de vendedores que nos atendem por favor, dispensando-nos o seu tempo com displicência e um ponto de irritação porque não somos a Paris Hilton ou a Lili Caneças. Não gosto de maus vendedores e muito menos de maus vendedores que vestem blazer azul marinho como o meu e abusam do telemóvel para dizer ‘estou aqui’ ou ‘o que é que estás a fazer?’: aquele vendedor reunia em si e de uma vez todas estas qualidades.

Para compensar sempre gostara daquele carro: formas inusuais, atrevidas, redondas, um espaço insólito e um ou dois detalhes de grande carro a preço de funcionário público. E o meu era comprovadamente uma porcaria: caro, gastador, sem força e com excessiva fama do contrário. Já me havia arrependido vezes sem conta de o ter comprado e nada mais me restava senão esperar pela sua morte natural.

De tempos a tempos, sempre em dias de especial irritação, jurava a mim mesmo vendê-lo na primeira oportunidade a quem quer que fosse e a qualquer preço, sob pena de o abandonar no primeiro semáforo em vermelho que me barrasse o caminho. Estava eu num destes amáveis dias quando dei por mim a entrar no centro comercial sem razão aparente, embora sendo eu do tipo que não dá ponto sem nó excepto quando a irritação me inunda, como era o caso. Ao dobrar uma esquina vi-o exposto no átrio, brilhante, tentador, como à espera de um acto heróico da minha parte. Fui direito a ele, abri a porta, passei a mão no estofo, meti a cabeça no habitáculo para apreciar uma vez mais o espaço insólito num carrito utilitário, tão simpático, quando dois dedos me bateram nas costas. ‘Desculpe, é favor não tocar’. Era o mau vendedor de blazer azul como o meu. Em vez de o admoestar pela sua fraca prestação (seria por vestir eu um blazer igual ao dele?) fui direito ao assunto. ‘Tenho ali um carro de que não gosto e é capaz de valer mais do que este. Não mo quer avaliar? Se calhar aindo o troco por este’ Ficou a olhar para mim como se lhe tivesse feito uma proposta indecente. ‘Isto é um carro novo’ ‘Mas o meu é melhor e mais caro’ ‘Isso agora…’ ‘Está bem, mas não quer dar uma olhadela e dizer-me mais ou menos quanto pode valer neste momento?’ ‘É que eu estou aqui em serviço, sabe’ ‘São dois minutos, o carro está ali mesmo à porta…’ e o diálogo de surdos prosseguiu nestes termos por mais umas frases, comigo a dominar o impulso de lhe pregar uma chapada de mão aberta e insulto fácil.

Não poupou um único defeito, olhou para tudo e tocou em tudo no meu carro com a inclemência de um sucateiro que nos vai fazer o favor de ficar com um monte de chapa que outrora foi um carro, e ainda por cima pagar. De nada valeram os meus contra-argumentos exaltando as qualidades que apesar de tudo o meu carro ainda tinha. Estava calor e eu tomei a iniciativa de despir o blazer, o que ele imitou sem cerimónia e sem agradecer o meu gesto, ignorando que eu o fizera com o desígnio de prolongar o regateio por mais uns minutos, não desisto facilmente de despachar o meu carro a um mau vendedor e em dia de irritação.

Em vão. Despediu-se dando-me dois ou três conselhos daqueles óbvios, de chapada directa, vestiu o blazer e desapareceu no interior do centro comercial como regressado de uma visita relâmpago ao inferno.

Voltei para casa ainda mais irritado do que já estava, por fortuna para o meu carro sem encontrar um único sinal vermelho. Entrei pesadamente, quase a arrastar o blazer, e quando o fui pendurar notei algo estranho, um acréscimo de peso que até para o meu blazer era excessivo. Apalpei os bolsos, continham a habitual feira da ladra que transporto sempre nas entranhas dos meus casacos, mas continuei a achar demasiado, afinal o cansaço não era assim tanto, logo ali havia qualquer coisa que não batia certo.

Pendurei o blazer e meti as mãos nos bolsos. A direita tocou um objecto denso, compacto e pesado: era o telemóvel do mau vendedor e pior comprador do blazer azul marinho como o meu. Desenhou-se-me um sorriso maléfico de orelha a orelha, as sobrancelhas arquearam-se duas ou três vezes muito rapidamente, qual Coiote à espera do Bip-Bip.

Comprovei que o aparelho estava em nome da companhia empregadora, fiz um par de diligências que me eximo de detalhar, e a placidez mais doce varreu a irritação do meu dia tão aziago. Ainda pensei telefonar ao sujeito a informá-lo de que nunca mais usaria aquele telemóvel, mas compreendi que seria impossível.

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4 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Não me diga que lhe ficou com o telemovel?

3 de fevereiro de 2007 às 12:16  
Blogger Miguel Viqueira said...

Pois então...!

3 de fevereiro de 2007 às 20:46  
Anonymous Anónimo said...

Vai-me desculpar mas não acho que tenha sido correcto.
O senhor sabendo de quem é o telemovel deve entrega-lo.
Não acho nada interessante que tenha colocado isso num texto de um blog, pelo contrário acho que deveria ter vergonha.
Espero que tome a atitude correcta.

4 de fevereiro de 2007 às 01:31  
Anonymous Anónimo said...

hehe... adorei!

6 de fevereiro de 2007 às 13:11  

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