10.3.07

Reflexão sobre o você

A NOVA GERAÇÃO perdeu quinhentos vocábulos. A nova geração não transcende nem trucida; não transfigura nem consubstancia; não abarca nem fenece; não é concupiscente nem lasciva. São termos demasiado elaborados. A nova geração é do boé.
Tá-se. Curte. Tá-se bem. E prontos.
A nova cultura foi buscar o you ao inglês e quer espalhar o você como tratamento universal. Não é.
Eu não andei na costura com a menina da farmácia que me pergunta o que é que você quer? com um olhar entre o displicente (coisa que ela nunca saberia o que significa, mas terei todo o gosto em explicar-lhe…) e o sonolento.
A coisa começa a abranger já os stands de automóveis, os balcões de bancos, o atendimento hospitalar. Má educação? Nem tanto. Talvez mais um mau entendimento das semióticas complexas do tratamento nesta esquisitíssima língua portuguesa.
Com efeito, é possível elaborar em português um texto amplo de muitas páginas - uma carta, enfim, sei lá o quê… - sem estabilizarmos muito especificamente num tratamento do outro nem no tu, nem no você, nem no senhor, nem no Vª Ex.ª.
É árduo, mas consegue-se.
Os títulos e os cargos; as comendas, aristocracias e doutoramentos; as idades e funções desempenhadas; os próprios cabelos brancos, a bengala, o sotaque, o chapéu. Ou os piercings, a ganga, a companhia. Quase diria que o carro que se tem, são parafernália imensa, construtiva de arquétipos e idiossincrasias que devem culminar, após rápida análise, na escolha do tratamento adequado.
Isto é: há sempre dados indicativos fornecidos pelo próprio e pelo enquadramento - se a pessoa que está à nossa frente quer ser tratado por meu, ou por o senhor, creio eu.
Mais. Eu próprio, uns dias amanheço operário, nos outros, visconde. Uns dias, sinto-me perfeitamente arquitecto, nos outros, lançador de martelo. De manhã tenho a quarta classe tirada em adulto, e a partir das cinco da tarde chego a atingir brilhantismos exuberantes que a mim mesmo surpreendem.
Eu próprio portanto, nem sempre sou eu.
Como institucionalizar o prosaico e democrático você? NUNCA!
Há demasiado pessoal nos bancos e farmácias, guichets e recepções variadas, ministérios e repartições, stands e ervanárias, restaurantes e funerárias, táxis e floristas, hotéis e esquadras - enfim, em toda a parte - a tratarem-nos por você.
Parece ser uma doença geracional.
Talvez inocente na sua essência e pura na sua tentativa, mas entendida por uma grande maioria de pessoas de meu complicado tempo como grosseria imensa e indesculpável.
Senhores formadores de formadores de formadores, por favor, instruam em vossas tão bem pagas formações. Nesses seminários de empresa que não servem para quase nada. Nesses cursos de produtividade e motivação. Nesses impressos de instruções. Nessas formações intensivas de pacotilha. Ensinem, se puderem, o valor acrescido da educação.
Baseada na tal análise autocrítica espontânea do que eu sou e do que o outro é.
Haja pudor e respeito. E inteligência.
Eu nunca compraria um carro a um mangas que me apareça e me pergunte, coçando a braguilha, como já me aconteceu:
– Então você queria um destes, não?
Podia ter dinheiro para lhe comprar dois. Mas ali, juro que não.
Haja também o entendimento de que somos assim mesmo – complicados e diferentes. De que não queremos de todo nem vulgarizar nem descomplicar as coisas.
Entenda-se que somos portugueses. Metade lixando a outra metade.
Sacanas, bastardos, filhos da mãe. Polidos, sabedores, diplomatas da treta. Heróis do bluff e da paisagem. Cavaleiros e poetas; bailadores e festeiros. Velhos aristocratas da terra e do mar. Respeitemos, pois, a nossa própria complicada complicação.
Eu, chapéus, já tenho imensos. Dezenas. Mas juro. Vou passar a usar bengala. Fica-me bem e ajuda imenso a suportar este peso todo.
E se algum despudorado me tratar desautorizadamente por você, leva com ela.
Maestro, visconde, professor, mestre, doutor, comandante, ou, no mínimo, senhor.
Ou respondo-lhe:
- Qual é a tua, mano?

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6 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Gostei muito do texto.
Quando era pequeno em conversa com a minha avó utilizei o "você" e ela repreendeu-me de uma forma meiga que não se tratava as pessoas por "você" mas sim por o senhor ou a senhora, ou se se tiver conhecimento da formação da pessoa tratar a pessoa por doutor, arquitecto e por ai fora. Foi assim que fui educado, apesar de que não me choca que me tratem por "você".
Abraço!

10 de março de 2007 às 13:26  
Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

Um colega meu, engenheiro sexagenário (a quem as pessoas, excepto as mais chegadas, costumam tratar por "senhor engenheiro"), queixa-se de que, quando vai à consulta da Caixa, trata o médico de família por "senhor doutor", enquanto este retribui com um "você".

Acresce que o "doutor" é uns 20 anos mais novo...

10 de março de 2007 às 13:37  
Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

Já agora, e por ser sobre o mesmo assunto, aqui fica o link para uma crónica de Carlos Pinto Coelho («Estamos cheios de vocês»), aqui afixada em Fevereiro de 2005: http://sorumbatico.blogspot.com/2005/02/estamos-cheios-de-vocs.html

10 de março de 2007 às 14:14  
Anonymous Anónimo said...

Será disto?

Este texto diz muita coisa...

ANOS 90...
Já percebeste o que os anos 90 fizeram contigo?

1. Tentas teclar o teu pin no display do micro-ondas;

2. Não jogas paciência com cartas de verdade há anos, ou então nunca
conheceste outra forma de jogar paciência!

3. Perguntas, via e-mail, se o teu colega ao lado vai almoçar contigo e ele
responde-te, por e-mail claro: "Dá-me cinco minutos!";

4. Tens 15 números de telefone diferentes para falares com a tua família de
3 pessoas;

5. O motivo pelo qual perdeste o contacto com os teus antigos amigos e
colegas é porque eles têm um novo endereço de e-mail;

6. Não sabes o preço de um envelope comum;

7. Para ti, ser organizado significa ter vários bloquinhos de Post-It de
cores diferentes;

8. A maioria das piadas que conheces, recebeste por e-mail (e ainda por
cima ris-te sozinho...);

9. Já dizes o nome da firma onde trabalhas quando atendes o telefone em casa;

10. Digitas o 0 para telefonar de tua casa;

11. Vais para o trabalho quando ainda está escuro, voltas para casa quando
já escureceu de novo;

12. Quando o teu computador pára de funcionar, parece que foi o teu coração
que parou. Ficas sem saber o que fazer, sentes-te perdido;

13. Sentes-te nu quando te esqueces do telemóvel;

14. Leste este email e balanças afirmativamente com a cabeça em diversos pontos;

15. Já estás a pensar a quem vais enviar esta mensagem...

16. E LÁ ESTÁS TU A RIR-TE SOZINHO OUTRA VEZ.

10 de março de 2007 às 23:37  
Anonymous Anónimo said...

Eu gosto da palavra "você", é pequenina e bonita, mas é claro que em situações mais formais, não deve ser utilizada.

Agora, o que me irrita a sério é terem ressuscitado o "vós", como agora se ouve muito. Por amor da Santa, estamos no século XXI, não no século XIX.

Outra palavrinha horrorosa, que se escuta com frequência é"furibundo"
não sei de onde surgiu mas cada vez que a escuto dá-me voltas ao estômago.

Já agora,encarnado e vermelho
é exactamente a mesma coisa e uma não é mais correcta do que a outra,ao contrário do que alguns defendem.

11 de março de 2007 às 16:48  
Anonymous Anónimo said...

Acerca do "encarnado" e do "vermelho":

"Encarnado" vem de "incarnatu" (cor de carne) e "vermelho" vem de vermiculu" (cor do sangue).

Curiosidade:

A equipa do Benfica começou por ser referida como "Os vermelhos", e foi devido à Censura que passou a ser "Os encarnados". É que, nessa época, "vermelhos" era como eram referidos os comunistas.

--

"Você" vem de "vossa mercê", que evoluiu para "vocemecê" e, por fim, para "você".

--

"Pá" vem de "rapaz", e talvez seja por isso que, ainda hoje, não soa bem ouvir raparigas usar esse vocativo.

11 de março de 2007 às 17:37  

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