Retrato da Semana
A justiça na televisão
Por António Barreto
NA ÚLTIMA SEMANA, o meu texto “Justiça de massas”, sobre as reportagens televisivas que antecederam o julgamento de Santa Comba Dão, pode ter criado dúvidas sobre o papel profissional de um jornalista, Hélder Silva, autor de uma reportagem da RTP sobre o assunto e que me dirigiu um veemente protesto. Apesar de o jornalista e a RTP não terem sido expressamente mencionados, declaro que, depois de esclarecido, não ponho em causa o cumprimento dos deveres profissionais por parte de Hélder Silva. Não o fiz então, muito menos agora.
Entrevistado na prisão, em vésperas do julgamento, o arguido, acusado do assassinato de três jovens raparigas, negou as confissões a que alegadamente fora forçado pela polícia e declarou-se inocente. Dos crimes, acusou, nomeando-o, um vizinho. Disse eu que este último não aparecera nos ecrãs, “não se sabe se porque não quis ou se por não ter sido entrevistado”. Apesar de tal não ser evidente, o jornalista considerou que eu pus em causa o seu profissionalismo. Na verdade, a pessoa acusada não foi entrevistada porque tinha negado fazê-lo. Eu tinha apenas referido essa hipótese. Sei agora, em pormenor, que o jornalista fez o que devia. Informa-me também que, em peças emitidas e que não vi (foram várias, durante pelo menos dois dias, as transmissões da reportagem e seus excertos), não faltara em esclarecer que a pessoa acusada tinha declinado o convite para fazer declarações.
Além disso, por lapso meu, referi as declarações de dois advogados do processo, quando deveria ter dito um só. Quanto ao resto, mantenho tudo quanto disse. Não por motivos de deontologia profissional, mas por razões mais fundamentais que decorrem das concepções de justiça e de informação, considero condenável que uma estação de televisão faça anteceder o julgamento de reportagens, mesmo autorizadas pelas instituições prisionais, judiciais e policiais, nas quais vários intervenientes no processo iniciam, de facto, o julgamento, diante de milhões de pessoas desprevenidas e sem conhecimento do processo. O que, neste caso, me separa do jornalista, da direcção de informação da RTP e das autoridades que permitiram as filmagens (e que terão sido o tribunal, o director da prisão, a Direcção dos Serviços Prisionais e a Polícia Judiciária) é a concepção do papel da imprensa perante a justiça. É o modo como, muito especialmente, a televisão pode e deve tratar das questões em julgamento.
Não concordo com a prestação de declarações prévias aos julgamentos, esteja ainda o processo em segredo de justiça ou não. A função judicial necessita de reserva e recato. Tanto as vítimas como os arguidos, assim como os advogados e as polícias, têm o direito de se preservar para o julgamento. Mas também têm esse dever. Os debates em tribunal têm de ser originais e inéditos, à vista do público presente na sala. É errado e nefasto que a opinião pública possa ser "estimulada" por "aperitivos" de julgamento. O conflito de interesses (dos arguidos, da acusação, da justiça, da opinião pública e da imprensa) existe realmente, não cessa com o fim do segredo de justiça. Antes prossegue durante todo o processo, até ao trânsito em julgado. Estão em causa valores superiores (a inocência e a culpa, a serenidade e a isenção da justiça, a distância da justiça relativamente às pressões e às emoções públicas, etc.) que devem ser acautelados. A excessiva exposição mediática dos processos judiciais contraria frontalmente uma parte desses valores. Se todos os direitos das partes são garantidos, a liberdade de expressão não deve pôr em causa a justiça. A imprensa deve, evidentemente, tratar dos casos de justiça que estão em curso, deve obter as melhores e mais fiáveis informações, deve fazer tudo quanto as regras da boa profissão exigem. Mas não deve antecipar julgamentos, nem colocar frente a frente (directamente ou com dispositivos de montagem) os adversários. Há países em que esta reportagem, nos moldes em que foi feita, seria simplesmente proibida. E, caso fosse emitida, seria motivo para muito sérias penas (incluindo prisão) contra o jornalista, a estação de televisão e as autoridades que permitiram as filmagens naquelas condições.
Há duas ou três décadas, pelo menos, que se discute seriamente o papel da informação, particularmente o da televisão, nos processos judiciais e nos chamados casos de justiça. Vai-se lentamente construindo uma prática, nem sempre consensual. Há, por vezes, exagero de abertura e de “protagonismo” dos interessados. Mas também há, não poucas vezes, magistrados que não se importariam de fazer justiça quase em segredo. Certos processos e crimes têm o condão de despertar as atenções das televisões e do público, como foram, por exemplo os casos do Aquaparque, do Padre Frederico, da Casa Pia, do Apito dourado, da adopção de criança disputada ou da pequenina raptada no Algarve. Em situações como essas, a tentação sensacionalista parece irresistível. Nem sempre se soube respeitar as fronteiras, as quais, aliás, não estão claramente traçadas. Mas raramente, como agora, se ultrapassaram os limites.
Na imprensa que leio, apenas Vasco Graça Moura, no “Diário de Notícias”, reagiu energicamente a estes factos. Mais ninguém. Nem sequer a Ordem dos Advogados ou as associações de magistrados. Muito menos o Ministro da Justiça, o Procurador-geral ou os Conselhos das magistraturas. Disse e repito: só um país anestesiado assiste, impávido, a esta paródia.
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3 Comments:
A crónica de Vasco Graça Moura, publicada no «DN» e referida neste texto, foi aqui afixada, na semana passada, em "Comentário".
Aqui fica ela, novamente:
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O ALARIDO DOS INOCENTES
No dia 3 de Junho, a seguir às notícias das 20.00, a RTP1 entrevistou um sujeito que está pronunciado pelo homicídio de três raparigas, cometido em circunstâncias particularmente chocantes. Sem a autorização e a complacência da autoridade prisional, a entrevista não teria sido possível.
Tratou-se de um genial acesso de sensacionalismo da televisão do Estado, para antecipar, face à concorrência, a rotunda negação da prática dos crimes que, no dia seguinte, iria ser feita pelo acusado na audiência de julgamento.
É sabido que a RTP precisa de uma programação deveras aliciante para o horário nobre, ao mais baixo custo possível, sobretudo durante a presidência portuguesa da UE.
Pois com este precedente, e as portas das prisões docilmente escancaradas, ela dispõe agora de um verdadeiro filão: entre homicidas, violadores, falsários, assaltantes, escroques, corruptos, narcotraficantes e tutti quanti, a matéria-prima é fácil, abundante, acessível e de borla.
Todos eles se deixarão entrevistar de boa vontade na véspera do julgamento para dizerem que nada fizeram de mal, que a confissão lhes foi extorquida sob ameaça ou tortura, que as provas foram falseadas, que os juízes estão comprados, enfim, que são vítimas das mais intoleráveis picardias e iniquidades.
Imagina-se a variedade esfuziante dos programas que assim virão a substituir, com a caleidoscópica densidade humana destas criaturas, os lúgubres concursos da estação oficial, sempre, claro está, seguindo a regra da proporcionalidade entre os sexos. E lá teremos então uma série de casos como estes:
- o Evaristo Beringela, acusado de estrangular Francelina, a explicar, entre soluços, que teve uma fortíssima cãibra nas mãos quando afagava ternamente o pescoço dela;
- a Natacha Serigaita, acusada de transportar três quilos de cocaína fingindo-se grávida, a garantir a pés juntos que estava mesmo convencida de que só trazia pacotes de açúcar cristalizado, que já não lhe cabiam na maleta, para a fábrica de caramilos do cunhado;
- o Zenóbio Setepés, acusado de assaltar uma bomba de gasolina com uma caçadeira de canos serrados, a asseverar que se tinha encapuzado e disfarçado de etarra para ir a um baile de Carnaval e apenas entrara ali para comprar um maço de SG Ventil;
- a D. Silvaninha Bezerra, acusada de burla continuada, de mãos papudas e olhos em alvo, a gemer que lhe tinha aparecido a vidente da Ladeira dizendo-lhe que Nossa Senhora e os três pastorinhos lhe encomendavam, para salvação da sua alma, que se tornasse banqueira do povo e mãe dos aflitos;
- o Serapião Cuco, acusado de tráfico de armas, a jurar que as dez metralhadoras, as seis granadas de mão, as 18 pistolas de guerra, os pacotes de munições e os 50 mil euros em rolos de notas tinham sido encontrados numa serapilheira pelo filhinho de tenra idade, quando andava a brincar atrás de uma moita no pinhada Remontada de Baixo;
- o Libânio Surrobeco, acusado de violação, a contar como é que viu passar Isménia ao lusco-fusco e se limitou a pedir-lhe lume, para o que ela teve de tirar o isqueiro do soutien e, como não o encontrava, teve de tirar o soutien, prestando-se mui esbraseada a tudo o que se passou em seguida.
Se já ninguém acredita na Justiça, porque é que a RTP não há-de ter o desvelo carinhoso e solidário de dar voz aos inocentes?
Os dramas de faca e alguidar e o insuperável gabarito intelectual das entrevistas sacudirão a brandura atávica dos nossos costumes, provocarão o tremendo abalo catártico das almas, exarcebarão titilações sincopadas dos sentimentos, educarão para a cidadania, produzirão cultura da melhor, evitarão os erros judiciários, contribuirão para a aprendizagem ao longo da vida, potenciarão o aproveitamento escolar, porão de cócoras os nossos parceiros europeus e farão com que as audiências subam na vertical.
A RTP e a autoridade prisional continuarão a achar que colaboram num verdadeiro serviço público.
Ninguém lhes vai à mão. Ninguém responsabiliza ninguém. Ninguém vai para a rua. O Governo, esse, inimputável, impávido e sereno, assobia para o lado.
Estas crónicas de A. B. são muito boas. Dá gosto ler o que escreve uma pessoa lúcida como ele, e que é mais independente do que muitos "independentes" que por aí andam.
Está de parabéns o "Sorumbático" por publicar regularmente as crónicas de António Barreto.
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