17.6.07

UM CÉU DE CHUMBO

Por Nuno Brederode Santos

TENHO UMA AMIGA que renega o que a metafísica pode ter de sedutor, mas pisca o olho a um bom ritual vudu e adora um qualquer bruxedo de vão de escada. É ela quem me garante que este mal-estar pegajoso, esta dolência sorumbática que tomou conta de mim, é natural. Nem é da idade, nem é birra de alma. Diz-me que o cinzentismo do céu não se fica lá por cima, desce à terra. E derrama-se, húmido e viscoso, pelo chão à nossa volta, até tomar conta de nós.
Gosto da tese, porque ela me absolve. Assim não tenho de acrescentar ao torpor físico, à modorra intelectual e a um enorme enfado o martirológio do remorso. Passo logo a vítima, por um mecanismo de autoprotecção do ego que Santana Lopes descobriu há muito tempo. A culpa, essa, é do mundo, da Europa, do país, da cidade e da minha rua. Tudo culpas com que eu posso bem. Porque só repensa o cerco o sitiante; o sitiado senta-se no seu destino.
Umas férias vinham agora a calhar. Não sei porquê, mas vinham. Esquecia o melodrama da Ota, que meteu férias de seis meses (mesmo que eu me incline a pensar que foi de vez), e aguardava pelo fim de Junho, para me inteirar de coisas que me interessam.
Uma delas é saber qual o preço, em descaracterização do original, que a bancada parlamentar socialista vai ter de pagar para majorar a votação do projecto da equipa liderada por António José Seguro. Se tudo se viesse a saldar numa duplicação das comparências do primeiro-ministro no hemiciclo, isso seria, convenhamos, o mais pequeno rato que alguma montanha pariu.
A outra é verificar os termos da aprovação final da legislação antitabágica (a minha declaração de interesses já se deixa adivinhar: fumo e gosto de fumar, mas gosto muito que nenhum dos meus filhos o faça). Agora que a honra europeia do Governo está a salvo e que o pundonor profissional do ministro da Saúde foi celebrado, cabe aos parlamentares descerem ao mundo imperfeito dos homens, desses cuja carne em vida é fraca e depois dela é só ração para vermes. Não compliquem muito o interinato amável que ela é. A Espanha entrou com a espada dos conquistadores, mas depressa a embainhou, recolhendo aos limiares do bom senso. Esse é, segundo a imprensa, o ponto em que as coisas estão. Era bom que a flexibilidade que todos estão a exibir permitisse uma solução equilibrada. A utopia dos puritanos só se impõe a ferro e fogo e, por isso, é um dos círculos do inferno.
Resolvidas estas coisas com o termo da sessão legislativa, teremos por certo um céu menos plúmbeo, mas os prosélitos ficam retidos até meados de Julho.
Primeiro, por um processo disciplinar da DREN, cujas conclusões eu, muito institucionalmente, estou disposto a aguardar com a serenidade de um monge budista. Mas isso na condição de uns quantos videirinhos não o aproveitarem para ajustar contas antigas e sobretudo de a própria processante respeitar o mesmo recato, deixando de se desdobrar em declarações e entrevistas que objectivamente pressionam as conclusões.
Depois, por umas eleições autárquicas intercalares em Lisboa que possam devolver à cidade ao menos qualquer coisa a que possamos chamar normalidade, para depois a relançar. É preciso que, de entre doze vontades proclamadas, sobressaia quem queira, saiba e possa fazê-lo. Mas a minha convicção na vitória de António Costa não elimina e não resolve as ansiedades. Terei de cá estar, a esvair-me à torreira do Sol, no dia 15 de Julho. Esperando poder entregar-me, num jantar tardio, às delícias pagãs de uma vitória (que deve sempre ser celebrada como se fosse a última).
Só então os cidadãos devotos estarão livres para o mergulho no mais natural e primário de si mesmos, que é o apelo de férias dignas desse nome. Se tiverem a garra ou a resignação para se fazer à estrada, de vidros claustrofobicamente fechados e com o ar condicionado a mentir-lhes sobre os 40.º lá de fora. E a abstracção de carácter que lhes permita sulcar a planície alentejana e, ao ver um compatriota deitado à sombra de um chaparro, resmungar convictamente: "Que país este! Assim é que não vamos lá..."
«DN» de 17 de Junho de 2007

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8 Comments:

Blogger António Viriato said...

Duvido que NBS ficasse tão sereno com o processo do Professor vítima de delação, se os responsáveis não fossem quadros «socialistas».

Imaginemos que eram da tal Direita «execrável e hedionda», onde invariavelmente esses presumíveis socialistas colocam os do PSD e do CDS/PP, excepto quando estes aceitam a sua subordinação aos preclaros «socialistas», porque, nesse caso, passam logo a democratas regulares.

Manteria NBS essa suposta serenidade budista para emitir juízo ou opinião, se o caso tivesse ocorrido em conjuntura política revertida ?

Bem me lembro das suas crónicas no Expresso, em que anos a fio verberou o seu nefando Cavaquismo, retratado como uma espécie de quase-fascismo, subitamente regressado às nossas democráticas praias de Abril, como incansavelmente, semanalmente, NBS nos apresentava a política dos Governos de Cavaco, desperdiçando espaço e prosa, de resto, em geral, de boa linhagem, valha a verdade.

Pois é, meus caros, os actos que vemos praticar, nem sempre merecem o mesmo juízo valorativo. Depende o dito da filiação partidária de quem os pratica e do nosso parentesco com ela.

17 de junho de 2007 às 19:12  
Anonymous Anónimo said...

Diz A. Viriato:

«...os actos que vemos praticar, nem sempre merecem o mesmo juízo valorativo. Depende o dito da filiação partidária de quem os pratica e do nosso parentesco com ela».

Mas não há qualquer novidade (nem mal) nisso. A realidade não é única - é infinitamente facetada e "depende" de quem a observa.
Quem tem uma determinada filiação partidária tem uma ideologia bem definida, o que faz com que veja o mundo de determinada maneira.
É mesmo assim, e estranho seria se fosse de outra forma.

17 de junho de 2007 às 22:03  
Blogger António Viriato said...

Este ponto de vista último, de que a realidade ou a verdade não existem, mas tão-somente interpretações delas, resultantes de elaborações ideológicas das mesmas, é muito comum entre defensores do relativismo científico, particularmente gente ligada às designadas ciências humanas : Sociologia, Filosofia, História, Psicologia, Psicanálise, etc.

A consequência deste tipo de atitude conduz-nos à equiparação dos saberes, desvalorizando o conhecimento científico, tornando-o equivalente a qualquer outro tipo de saber, desde que socialmente elaborado, num determinado contexto histórico-sócio-económico. Daqui à cobertura da charlatanice e ao império do obscurantismo vai um passo de um anão.

Razão por que me desagrada fortemente esta atitude, que considero perversa e socialmente perniciosa, sem querer atribuir tal intenção ao meu interlocutor. Mas, se ela prevalecesse, voltaríamos ao tempo dos sofistas da velha Grécia, ao reino das opiniões sobre tudo, qualquer que fosse a natureza das matérias em discussão. Neste enquadramento, venceria a retórica, a habilidade argumentativa e nunca se apuraria nenhuma verdade, sobre o que quer que estivesse em julgamento.

No livro «Imposturas Intelectuais» da Gradiva, esta discussão foi amplamente tratada por Alan Sokal e Jean Bricmont, com leitura proveitosa para quem se interessa por este tipo de matérias. Também em Portugal, o Prof. António Manuel Baptista travou debate vivo com o Prof. Boaventura da Sousa Santos sobre o mesmo tema, que, infelizmente, não teve o acompanhamento devido da comunidade científica portuguesa, predominando as intervenções dos partidários do relativismo científico, muito alinhados com este conhecido Sociólogo. O debate saiu, assim, prejudicado pelas simpatias político-ideológicas que logo se estabeleceram, principalmente num quadrante marcadamente esquerdizante. Pode ser que um dia ele regresse, noutro contexto mais saudável.

Peço desculpa pela extensão da conversa, mas, na verdade, acho o tema deveras estimulante.

17 de junho de 2007 às 23:31  
Anonymous Anónimo said...

Em matéria de discussão da Realidade,podíamos remontar a Platão!
Mas o que eu quero dizer é muito mais simples - e ilustro-o com um exemplo:

Para mim, "a realidade" do estacionamento caótico na minha rua assume um aspecto que não é o mesmo para os automoblilistas em causa. O que para mim é um escândalo e uma pouca-vergonha, para eles é natural...

18 de junho de 2007 às 08:52  
Anonymous Anónimo said...

«...os actos que vemos praticar, nem sempre merecem o mesmo juízo valorativo...».

Claro! Veja-se o que sucede com os actos de Valentim Loureiro, Isaltino de Morais, Fátima Felgueiras.

Então o juízo valorativo que deles fazem os portugueses não depende "daquilo que a gente sabe"?

Claro que sim. Depende da posição em que está o "observador", e estranho seria se fosse de outra forma.
Até nos tribunais as sentenças são - quantas vezes! - contraditórias, porque a visão dos magistrados sobre o mesmo assunto é diferente, função das suas vivências.

18 de junho de 2007 às 11:12  
Anonymous Anónimo said...

Curioso ! Só vejo aqui comentários ao comentário do António Viriato ! Parabéns, Viriato ...

Aproveito para recordar que eu próprio já aqui deixei um comentário a um anterior artigo de Brederode, estranhando que este homem, tido por intelectual, não saiba produzir mais nada senão ataques a figuras do PSD. Para intelectual, acho pouco...

Jorge Oliveira

18 de junho de 2007 às 23:19  
Anonymous Anónimo said...

No que a mim toca, os comentários são feitos ao "comentário" de A.V. e não ao texto de NBS porque este, pelo menos para mim, não tem nada de polémico.

18 de junho de 2007 às 23:37  
Anonymous Anónimo said...

Jaime Gama critica reforma do Parlamento e atrasos nas leis eleitorais
19.06.2007 - 09h53 Leonete Botelho/«Público»
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Foi uma sobremesa amarga aquela que o presidente da Assembleia da República (AR), Jaime Gama, ofereceu ontem à noite aos deputados socialistas, no final do jantar das jornadas parlamentares sobre a reforma do Parlamento. Primeiro, disparou contra o eventual esvaziamento das sessões plenárias e a transferência do debate político para “18 parlamentos escondidos”, referindo-se às comissões. Depois, aos jornalistas, apontou o dedo ao seu próprio partido pelo atraso na reforma do sistema eleitoral.

“A reforma do sistema político, que está ao alcance desta legislatura, tem duas componentes: a reforma do Parlamento e a reforma do sistema eleitoral, e nesta estamos atrasados, é preciso andar mais depressa”, afirmou Jaime Gama no final do jantar, explicitando a intervenção que acabara de fazer. “O PS tem enunciado no seu manifesto eleitoral o que entende por reforma do sistema eleitoral mas ainda não apresentou propostas”, sublinhou.

De facto, o PS tem adiado a apresentação da sua proposta, que passa pela criação de círculos uninominais na Assembleia da República, à espera que o PSD diga o que pretende para esta reforma. O dissenso, que se arrasta há uma década, assenta sobretudo na redução do número de deputados, pretendida pelos sociais-democratas e muito polémica entre os socialistas. E o PSD, apesar de já ter anunciado formalmente que apresentaria em breve a sua proposta de reforma, ainda não o fez.

“É questionável que as principais forças políticas tenham concorrido nas últimas legislativas com esta reforma no seu programa eleitoral e ainda não a tenham apresentado”, frisou Jaime Gama, embora salvaguardando que ainda há tempo para atingir o objectivo, ou seja, que a nova lei “entre em vigor já nas próximas eleições legislativas”.

Em qualquer caso, deixou claro que, em seu entender, a redução do número de deputados é “um corolário da alteração da lei eleitoral”, confirmando o seu desejo de que tal venha a acontecer.


Faltas dos deputados preocupam


Também a reforma da instituição a que preside – e uma das bandeiras do grupo parlamentar do PS - lhe merece reparos e críticas. Desde logo pela ideia de fazer transitar para as comissões grande parte do debate sobre as iniciativas legislativas. “As comissões são do Parlamento, não são 18 parlamentos agregados numa federação de parlamentos”, alertou Gama.

Em seu entender, “o plenário é o lugar essencial do debate político e da discussão fundamental das leis em primeira leitura, além da sua votação. Trata-se de uma instituição, não se trata de um happening”, frisou.

Uma das grandes preocupações do presidente da AR é a assiduidade dos deputados: “Não há nenhuma reforma do Parlamento que seja boa mas seja julgada pelos portugueses como subterfúgio para retirar o controlo de assiduidade no plenário para o passar para as comissões”, considerou. Era este o sentido da sua expressão de parlamentos escondidos: “São comissões sem escrutínio de presença” dos eleitos.

A intervenção de Gama parece ter estragado a festa aos deputados. Em vez de ficarem marcadas pelas boas notícias em matéria de avanços na reforma – por ausência de anúncios de matérias já consensualizadas com os outros partidos -, as jornadas sobre a reforma do Parlamento arriscam-se a ficar na história pelas críticas que ali se ouviram. E se ontem ainda não havia qualquer reacção oficial, certo é que as palavras do camarada de bancada caíram mal e foram lidas como (mais) uma falta de lealdade e uma sede de protagonismo de uma das figuras que mais terá a perder com a reforma em curso.

19 de junho de 2007 às 10:50  

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