29.7.07

AO LEME

Por Nuno Brederode Santos
A RECUSA do Governo da Região Autónoma da Madeira (e do PSD local) em dar cumprimento a uma lei da República - no caso, a da interrupção voluntária da gravidez - teve, como é costume, um primeiro momento filosófico: o "não me venham com essa do Estado unitário" (sendo que "essa" é a primeira estatuição do art. 6.º da Constituição). Veio depois a afirmação do princípio da inaplicabilidade da lei à Madeira, com o argumento de que, no referendo e ao nível regional, o "sim" perdeu com o "não". Seguiu-se a explicação de se aguardar a voz do Tribunal Constitucional. Mas, revelando este que tal nem lhe fora pedido, passou-se à espera dos pareceres jurídicos de apoio. Enfim, e perante o crescendo de declarações de figuras respeitadas da direita, que insistiam na inadmissibilidade de uma Região recusar uma lei da República, tudo veio dar à praia de não poder a Região ser obrigada a um dispêndio não orçamentado.
Jardim e os seus sempre gostaram do jogo à beira da ruptura, baseados na ideia - que a prática da República, lamentavelmente, fomentou - de que o bom senso, por o ser, acaba sempre vergando-se perante a irresponsabilidade. Ideia que, a bem de todos, terá de ser desmentida com factos. E quanto mais tarde o for, maiores serão os custos. Para todos.
Mas, no imediato, mais complicada é a reacção do Presidente da República. De facto, num primeiro momento (aliás tardio), Cavaco declarou que, "quando a legislação não é aplicada, os cidadãos podem recorrer a instâncias próprias, ao sistema de justiça". Pois podem, mesmo se, no caso concreto, estamos a lidar com prazos que tiram à sugestão qualquer sentido. Mas quem, não só pode, como deve, intervir é o Presidente da República. Porque não foram os cidadãos quem promulgou a lei em causa. Porque um responsável autonómico declarou rejeitar o carácter unitário do Estado - e ao Presidente cabe fazer cumprir a Constituição. E porque, embora com argumentos em constante mutação, foi formalmente dito e repetido que uma Região Autónoma recusa aplicar uma lei nacional - e isto corresponde ao mais irregular "funcionamento das instituições".
Num segundo momento (por definição ainda mais tardio), Cavaco, muito arbitral e superpartes, veio dizer que o papel do Presidente é encorajar a "cooperação entre as autoridades de saúde" nacionais e regionais. Mas a saúde, aqui, é já paisagem. A questão central é a do acatamento, ou não, pela Madeira, de uma (qualquer) lei da República. E é da República que Cavaco é Presidente. E foi a sua assinatura que tornou aquele acatamento obrigatório. Não se vislumbra o que haja para arbitrar ou para encorajar cooperações.
Ambos os momentos foram decepcionantes. E perigosos para o próprio Presidente. Porque, na ânsia de fugir aos incómodos da frontalidade, Cavaco afirmou doutrinas que, além de erradas, são limitativas da margem de intervenção do Presidente. É compreensível que ele não goste de tomar posições firmes quando julga não dispor de poderes para as impor. Nenhum dos seus antecessores gostou, mas nem por isso deixou de as tomar (pelo menos no que visivelmente punha em causa o funcionamento do sistema político). Talvez isso chame a atenção para algumas insuficiências de que a função enferma. Só que elas não lhe são imputáveis. Ao contrário das novas doutrinas que, sendo improvisos de circunstância para legitimar omissões do Presidente, serão amanhã o arrimo dos que quiserem esvaziar-lhe ainda mais a função.
Por inseguro que se sinta, Cavaco já terá percebido que ali, ao leme, é mais do que ele. E recordará, da campanha que aí o conduziu, como acenou com os prodígios de uma brumosa cooperação estratégica entre Presidência e o Governo. Porque os eleitores, esses, lembrar-se-ão de nada lhe ter prometido. Nem que o cargo era leve e tranquilo (uma espécie de triunfo de Pompeu sem ninguém a recordar-lhe que toda a glória é efémera); nem que o esperava o remanso divertido de uns anos de favas contadas, em que Portugal era uma nova Disneylândia.
«DN» de 29 de Julho de 2007

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3 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Estou muito longe de aprovar a maioria das atitudes folclóricas de Alberto João Jardim.
Todavia, no caso presente, é lamentável que se insista (como faz NBS) em discutir o folclore em detrimento da questão de fundo. Porque, por uma vez na vida, Alberto João é capaz de ter razão. A aplicação da lei da IVG acarreta maiores despesas à região. Em conformidade, o governo central teria a obrigação de dotar a mesma região com o acréscimo das verbas necessárias à aplicação da lei. Parece que não o fez. Se não for assim, corrijam-me.
Jorge Oliveira

29 de julho de 2007 às 19:34  
Blogger R. da Cunha said...

Subscrevo, na sua totalidade, a peça publicada, mormente no que ao PR respeita. Quanto ao comentário que me antecede, saiba quanto está previsto o governo do sr. Jardim gastar com as IGV: 0,07% do orçamento para a saúde ou um terço daquilo que desembolsa para o Rally lá do sítio. Ou compare-se com os foguetórios de fim-de-ano ou com os apoios aos 3 - três - clubes da região. Haja a noção das proporções.
Aliás, o que está em causa é todo o desenvolvimento do assunto, por parte do sr. Alberto. Haja decoro.

29 de julho de 2007 às 20:03  
Anonymous Anónimo said...

Bem, independentemente das proporções e da forma como o Alberto João se está a aproveitar deste assunto, parece que o leitor anterior não nega a existência da questão de fundo. Pelo contrário, parece confirmá-la.
Jorge Oliveira

29 de julho de 2007 às 23:15  

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