5.8.07

A CONDIÇÃO HUMANA

Por Nuno Brederode Santos
CHEGOU, DESFEZ AS MALAS, instalou-se. Eu tinha-o cheirado ao longe, pois já cá ando há um bom par de anos e detesto sentir-me capa do National Geographic. Esperava apenas pelas eleições em Lisboa para debandar, pelo menos psicologicamente. E estava a fazê-lo, quando ele chegou. Trouxe-me o costume: a pele de sapo, a preguiça respiratória e a artrose das meninges. Chamarem-lhe global não me conforta. Posso vê-lo o nos outros, mas só o sinto em mim. E o que sinto inibe todas as vocações altruístas. Não sobram culto pátrio, nem civismo, nem solidariedade. Amanhem-se. Aguentarei este calor sem esperança, só com espera. Ou seja, sem pose nem atitude, só com intendência e rotinas. Confrontados com o pior da natureza, temos de nos armar com o pior de nós próprios.
Procuro refúgio no carro, onde o ar condicionado me vai constipar. Mas esse é um problema novo e é do problema velho, o do calor, que eu estou farto. Arranco para correr a cidade. Sem rumo e a gastar a gasolina do vosso défice externo. No primeiro semáforo desta minha nova liberdade, ocorrem-me as "directas" do PSD. Afligem-me os remorsos de calar que há, apesar de tudo, algo de qualitativo a separar as fraquezas e cedências de Marques Mendes à assustadora leviandade de Menezes. Mas a "falha na minha biografia" (em alusão pública a nunca ter estado antes na festa do Chão da Lagoa, ainda por cima por expressa recusa de convite) e o entusiasmo de menino coreano pelo "nosso grande líder" deixaram-me prostrado. Há quem me diga que a capitulação ante o "pragmatismo" das razões do voto foi já a razão do auto-afastamento de Pedro Passos Coelho. Talvez, mas votos não deu. Deu, pelo contrário, uma derrota, desnecessária e nunca invocada: a do referendo, no qual várias figuras de proa do partido estiveram até do lado vencedor. Mas não deixo de reconhecer que o problema Marques Mendes é do PSD (só dele exorbitando, na exacta medida em que uma boa oposição também condiciona um bom Governo), enquanto que o problema Menezes, com as necessárias e improváveis condições astrais, pode até ser do regime.
Já na Praça de Espanha, vejo um cão atrás de um gato. Mas, logo depois, corre o gato atrás do cão. Afinal - e contra as leis da criação - estão a brincar. Serão do mesmo dono? Cavaco teve alguma razão no veto. É certo que ele não inculca com clareza as modificações a operar no dispositivo legal. Mas um veto presidencial não pode ter só esse objectivo. Quando um diploma gera tanta comoção, o mínimo dos mínimos é que se olhe com cuidado o seu processo. As certezas fáceis e as metodologias expeditas fazem sempre um casamento aventureiro. Não que um veto possa pedir mais do que uma reapreciação e uma votação maioritária. Mas está criada a oportunidade para desfazer dúvidas e repensar soluções.
Passo pela Universidade Clássica e ocorre-me o despacho de Mariano Gago a ordenar o encerramento compulsivo da Universidade Independente. Não podia ser de outra forma, por muito que os cinco meses decorridos possam ter feito esquecer o que, de laxismo, venalidade e incompetência, nos foi revelado existir nalgum ensino superior privado. Ponto é que a vigilância não se fique por aqui.
Faço a 5 de Outubro, na direcção da Fontes Pereira de Melo. Uma mulher andrajosa traz ao colo uma criança e aborda os carros que param à minha frente. Lembro-me de, há anos, sob a influência de notícias da altura, ter recusado uma esmola destas, sujeitando-me à observação sarcástica da minha parceira na viagem: "Fizeste muito bem. Trata-se obviamente de uma milionária excêntrica." Olho, de passagem, a agência do BCP. Como é que nós, os leigos, poderemos alguma vez entender que o maior banco privado português seja tão dramaticamente vulnerável ao que mais parece uma querela de águas entre vizinhos pobres? Não foi a democracia cristã que mais nos zurziu a cabeça com a "responsabilidade social das empresas"?
O primeiro espirro chegou já nos Restauradores. Por severa que seja, a condição humana é tremendamente previsível. E no meu caso (de algum privilégio) vai ao lugar com aspirinas.
«DN» de 5 de Agosto de 2007

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