23.9.07

AS DIRECTAS E A ROLETA RUSSA

Por Nuno Brederode Santos
EU ESTAVA ENTRE AMIGOS à mesma hora em que, na SIC Notícias, Ana Lourenço estava entre inimigos. Por isso, perdi o debate em directo entre Marques Mendes e Menezes (ou muito dele, o que vem a dar ao mesmo). Mas, chegado a casa, acampei à frente do televisor e montei-lhes espera. Ia alta a madrugada quando eles voltaram ao local do crime, permitindo-me então ver a fita inteira.
Mesmo que os eleitorados assim o não entendam, o melhor homem para liderar só acidentalmente será o melhor homem para debater. Até no parlamentarismo mais puro, nenhum primeiro-ministro subsiste apenas à custa dos seus desempenhos parlamentares (embora não me recorde de primeiro-ministro algum que, com bons resultados da governação para exibir, seja presa fácil da retórica oposicionista). Por isso, há que reconhecer que a débil prestação dos debatentes do passado dia 18 não é, por si só, um atestado de incapacidade de Mendes e de Menezes para chefiarem o PSD. Mas como, na oposição, a palavra é o arsenal para o combate, os eleitores tendem a tomar por mau quem dela fizer mau uso.
Ora ambos fizeram mau uso dela. É certo que trouxeram bem resolvidos os problemas do atavio de estadista responsável (que são o alfa e o ómega dos consultores de imagem) e que assumiram uma postura serena e cortês no começo do debate (porque, depois disso, o tão prezado instituto da indignação legitima sempre as veemências ofendidas, as consequentes diatribes e os protestos de bom sangue). Nem o gesto tenso, de lobo atrás da moita, que Menezes exibia enquanto Mendes falava, nem a falsa displicência das pálpebras a meia haste, com que este ouvia aquele, tinham poder bastante para estragar uma boa discussão. Mas aconteceu que esta não existiu, por exclusiva culpa dos dois (e não da moderadora). Enredando-se na imputação de contradições e agravos da vida interna do partido, ambos desperdiçaram a batalha pela opinião pública que as directas requerem e proporcionam. Simulando debater assuntos de política nacional, nunca conseguiram esconder a lógica intrapartidária que os norteava. Pior: fizeram mais pelo apoucamento do partido que disputam do que um debate parlamentar mal sucedido ou do que a mais desfavorável das sondagens.
Mas, a meu ver, por aqui se fica o match nulo. Porque também há vida para além dos debates. E, no curso dela, de há muito se percebeu que, no jogo que a democracia também é, Marques Mendes cumpre as regras. Não é mestre nem aprendiz. É um jogador mediano que, avançada a noite, foi chamado a jogar numa mesa onde o nível das apostas o transcende. Hesita, tergiversa, ousa e encolhe-se. Mas, no essencial, cumpre. Ao contrário de Menezes, para quem ases a mais, ou mudança de regras entre duas jogadas, são coisas lícitas desde que o conduzam à vitória. Mendes achará que esta é a oportunidade da sua vida política. Mas Menezes dá à vida - à sua e à nossa - esta oportunidade de cumprirem o destino. É um demiurgo, iluminado por teomancia. É a direita que, a uma certa esquerda, quer disputar o "poder da rua" (como ele próprio admitiu já). É uma direita que, nesse afã, já deu o poujadismo na Europa e o justicialismo na América Latina. Uma direita que, sem o querer, afasta os "barões" e que, ao sentir-se abandonada por eles, cavalga os descamisados (e todos os descontentes, por mais contraditórios que sejam os seus interesses). É o embrião tradicional da direita dita "social", em cujos desmandos a democracia raramente acreditou em tempo útil. É claro que estamos na Europa e no terceiro milénio. O problema atenua-se. Mas não se resolve, precisamente porque ele não se dá conta disso. Uma infecção não deixa de ser preocupante só porque os médicos dizem que ela não é mortal. E fraco é o consolo de saber que há gente civilizada no barco de Menezes, pois a experiência diz que seria ela a primeira vítima.
E por isso confrange também que haja adversários do PSD a entender que uma vitória de Menezes seria óptima, por poder lançar o partido numa sucessão de crises de que seria difícil libertar-se antes das eleições legislativas.
«DN» de 23 de Setembro de 2007

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