24.9.07

O “Eduquês” envergonhado

Por Nuno Crato

POUCA GENTE O SABE, mas o Ensino Básico da Matemática rege-se actualmente por dois documentos discrepantes. A correcção está prevista, mas prepare-se o país para o pior: a ser aprovado um documento de reajustamento agora em discussão, a Matemática da escolaridade obrigatória passará a reger-se por três documentos desconexos. Sim, três.

O primeiro é o Programa, completado em 1991, e que, com Roberto Carneiro, introduziu oficiosamente a pedagogia construtivista no ensino, com as consequências que se conhecem. O segundo é o chamado Currículo Nacional do Ensino Básico — Competências Essenciais, que foi construído ao longo de vários anos, nos tempos de Ana Benavente, e aprovado em 2001, estando previsto ser concretizado num programa que substituiria o de 1991 e que nunca foi acabado. O terceiro será um documento de reajustamento, colocado fugazmente à discussão este Verão e agora em análise na 5 de Outubro.

Pretendeu o ministério evitar as descontinuidades e as grandes reformas pedagógicas; assim, em vez de estabelecer um novo programa, resolveu sabiamente fazer um reajustamento que permitisse clarificar o que se ensina na Matemática do Básico.

É natural que as intenções tivessem sido de tornar claro o que se ensina e não se ensina, e de esclarecer o que se pretende que os jovens aprendam e consolidem ao longo dos nove anos que passam no ensino obrigatório. Esperariam pais e professores que o novo documento resolvesse as incoerências entre o Programa de 1991 e o Currículo de 2001 e que traçasse objectivos claros, ano a ano, com rigor, objectividade e alguma exigência.

Engano. O nosso Ministério da Educação tem dito que quer cortar com o passado. Transmite uma imagem de rigor e até de intransigência. Seria bom que cortasse também com o passado nas orientações pedagógicas que a experiência mostrou serem erróneas. A máquina ministerial não o permitiu. A reformulação do programa é pouco clara nos objectivos e conteúdos, mas insiste na má orientação pedagógica da matemática e em muitos dos erros das últimas décadas.

Quer isto dizer que as vozes críticas que se têm levantado na educação continuam a não ter qualquer sucesso? O reconhecimento público quase generalizado de que as coisas não vão bem no ensino, em particular da matemática, não tem abrandado o dogmatismo daqueles teóricos da pedagogia que de há anos a esta parte negam a evidência dos resultados e que se esforçam por propagar a «escola inclusiva», as «competências gerais», a «pedagogia não directiva» e o «ensino centrado no aluno». Mas tem obrigado a um maior comedimento nas palavras. Os dislates discursivos que ficaram conhecidos como «eduquês» abrandaram. O sestro não.

Um exemplo elucidativo é fornecido precisamente pelo actual documento de reajustamento do programa. Os seus responsáveis defenderam durante anos uma teoria pedagógica perniciosa que opõe conteúdos a competências. Defenderam que os conteúdos não fazem sentido se não estiverem englobados em «competências», conceito que corresponderia a atitudes, conhecimento em acção ou capacidades gerais. Se esta teoria pretendesse apenas contrariar o ensino excessivamente livresco e sublinhar a importância de aplicar os conhecimentos, nada haveria a opor. Contudo, como é habitual entre ideólogos dogmáticos, o prélio foi levado ao limite, rejeitando a importância do conhecimento e acentuando competências vagas e palavrosas. A moda alastrou ao ensino superior. Aos professores começou a pedir-se que preenchessem formulários longos em que fossem destacadas as «competências comunicacionais» da Álgebra ou as «competências multiculturais» da Electrónica.

No Ensino Básico, em particular, as «competências» foram de tal forma glorificadas que os documentos oficiais passaram a desprezar o valor do conhecimento em si. Como resultado, as exigências claras e precisas respeitantes aos conteúdos começaram a ser substituídas por referências palavrosas e vagas às competências genéricas. Começou a falar-se do «conhecimento contextualizado» como receita geral, esquecendo a necessidade da abstracção. A verdade, contrariamente ao documento de 2001, é que o conhecimento não pode nem deve ser totalmente organizado em competências e deve ser especificado em conteúdos disciplinares precisos e testáveis. Como os críticos dessa orientação repetidamente focaram, dever-se-ia utilizar «conhecimentos e capacidades» ou outra expressão que explicitamente incluísse os conteúdos.

Vale a pena olhar para a maneira como as «competências» são tratadas neste novo documento. De uma maneira simples: omitem-se e substituem-se por «conhecimentos e capacidades»... O facto seria de louvar, mas é tão surpreendente nas pessoas que mais defenderam a teoria das competências que é difícil de perceber. Os documentos estão na Internet e permitem uma busca por palavras. Procure-se «competência» ou «competências». Desapareceram! A tentativa de evitar a controversa palavra foi tal que, nas referências bibliográficas, o próprio título do documento de 2001 foi truncado. É espantoso. A surpresa é quase tão grande como a que teríamos se, subitamente, padres da Igreja Católica elidissem do seu vocabulário a palavra «Jesus».

Mais importante do que o invólucro são as recomendações práticas. Começando pelas omissões. Como o afirmou a Sociedade Portuguesa de Matemática num parecer sobre este mesmo documento, ele «não constitui um apoio claro e preciso, de consulta simples e directa para o professor. Constitui apenas um amontoado de recomendações, algumas ambíguas, outras de hierarquia confusa, muitas redundantes, algumas repetitivamente apresentadas».

Ao contrário do que seria de esperar, o documento não apresenta metas claras e verificáveis para as diversas etapas. Diz que o «professor decide o nível de profundidade a tratar cada tópico» (p. 11) e rejeita a apresentação de «um roteiro possível de temas e tópicos a trabalhar por se considerar que tal deve ser definido a nível de escola ou de agrupamento escolar» (p. 2).

O estado actual do ensino e das escolas, no entanto, necessita de recomendações objectivas e precisas, onde possível especificadas ano a ano. É absolutamente indispensável que os professores e as escolas trabalhem com metas claras.

Significativamente, os vícios da linguagem «não directiva» continuam. Fala-se em «Discutir com os alunos» (p. 62) e nunca em «transmitir conhecimentos». Fala-se em «tarefas que o professor decide propor» (p.12), ou «pedir» (p.35) e não se diz que as deve «indicar» ou «mostrar». Para se perceber a profundidade do descaminho linguístico, basta dizer que nem uma única vez nas 77 densas páginas do documento se usa a palavra «ensinar».

O mais gravoso é a persistente desvalorização da memorização, dos automatismos e da mecanização dos algoritmos. Não aparecem metas concretas, precisas e progressivas. Desiludem-se os professores e pais que esperavam encontrar recomendações claras sobre a necessidade de domínio da tabuada, de prática de algoritmos das operações elementares e de domínio de conhecimentos. Não se clarifica, por exemplo, em cada etapa de estudo, a destreza na multiplicação com papel e lápis que os estudantes devem ter.

Em contrapartida, insiste-se no uso da calculadora desde o primeiro ciclo. Aquilo que toda a gente sensata vê com facilidade, que é a necessidade de evitar a máquina enquanto se aprende a tabuada e as operações elementares, os ideólogos dogmáticos do «eduquês» não conseguem ver.
As ferramentas modernas, como a calculadora e o computador, devem ser introduzidas no Ensino Básico. E mesmo no primeiro ciclo pode ser conveniente que os alunos comecem a familiarizar-se com estes instrumentos. Mas é absolutamente necessário que os jovens estudantes sejam impedidos de usar a calculadora no momento em que estão a memorizar a tabuada e a treinar as operações. Não se aprende a nadar passeando de barco. A calculadora pode e deve ter lugar na sala de aula, mas quando o professor disser, não quando os alunos quiserem.

O programa de 1991 cometia o erro de dizer que o aluno tem o direito de usar a calculadora sempre que o entender. O novo documento deveria corrigir expressamente esse erro absurdo, ao invés de voltar a insistir no uso indiscriminado da máquina. Mas alguma vez a «nomenklatura» da educação reconheceu algum erro?!

O problema, infelizmente, não é apenas português. Se lermos o recém publicado Eduquês: Um Flagelo sem Fronteiras, de Laurent Lafforgue e outros (Gradiva, 2007), vemos como a degradação dos conteúdos disciplinares e a sobrevalorização da calculadora têm ajudado a degradar as capacidades de cálculo e de raciocínio numérico dos jovens franceses e de outros países europeus.

O documento de reajustamento do programa, no entanto, menospreza os algoritmos tradicionais e pretende que os professores treinem o cálculo por processos morosos, pouco eficientes e viciadores. Assim, por exemplo, defende-se que se aprenda a somar 3 com 4 fazendo «3 + 3 + 1 = 7» (p. 17), a somar 543 com 267 por «somas parciais» (p.19) e a dividir 596 por 35 por «subtracções sucessivas» (p. 19). Ou seja, em vez de exercitar a memória e treinar directamente os processos mais eficientes, pretende-se prolongar no aluno o uso de métodos de recurso e altamente propensos ao erro.

Ao mesmo tempo que se desprezam os objectivos modestos, mas atingíveis, destacam-se metas utópicas, como a de os alunos serem «capazes de fazer Matemática de modo autónomo», nomeadamente «formular e investigar conjecturas matemáticas» (p. 6), recomenda-se que realizem «investigação matemática» (p. 11). E diz-se que devem «descobrir [...] os critérios de divisibilidade» (p. 35). Poderá pensar-se que se trata apenas de exageros, mas uma das características mais marcantes do construtivismo educativo dogmático é falar da compreensão, da descoberta autónoma e do desenvolvimento do raciocínio — metas grandiosas! — e, ao mesmo tempo, repudiar o desenvolvimento das destrezas básicas que lhes são antecedentes.

Certamente para que os fracassos destes métodos de ensino não se revelem, o documento defende que a avaliação deve «centrar a sua ênfase no que os alunos sabem, o que são capazes de fazer, e como o fazem, em vez de focar-se no que não sabem» (p. 13). Frase lapidar! A merecer moldura negra para relembrar às gerações futuras o que ideólogos dogmáticos são capazes de dizer quando cegos pela sanha ideológica. A ser seguida à risca, esta ideia, por si só, erradicaria por completo o insucesso escolar. Teste-se nos alunos o que eles sabem e não o que deveriam saber que o país progredirá sem o incómodo de conhecer as suas deficiências educativas.

Por estranho que pareça, a ideia de rejeitar a avaliação como algo incómodo não é uma excentricidade do «eduquês», antes é parte integrante e basilar dos extremos da pedagogia romântica. Alguns, negando a possibilidade de objectividade absoluta, rejeitam a avaliação no seu todo como um resquício do positivismo (pobre positivismo!). Outros assumem alguns momentos de teste de conhecimentos, mas apenas como pró-forma prófuga.

Apesar de largamente discutidos e anualmente polemizados, os exames rareiam em Portugal. Os estudantes passam os nove anos de escolaridade obrigatória sem nenhum exame nacional. Apenas no nono ano, depois de terem frequentado dezenas de disciplinas, são testados nacionalmente a duas. Apenas duas: Português e Matemática. Mesmo nestes exames, que só existem de há três anos a esta parte, a classificação obtida apenas conta para 30% da nota final. Os efeitos são reduzidíssimos, embora tenham tido uma acção moderadora. O país mudou desde que os exames nacionais do 12º ano, com Marçal Grilo, e os exames nacionais do 9º ano, com David Justino, foram instituídos. Imagina-se que mais poderia mudar se a avaliação externa nacional fosse mais frequente, se incidisse sobre mais disciplinas e se fosse mais rigorosa e fiável.
As mudanças no sistema de avaliação são decisivas para a regulação de todo o sistema educativo. Infelizmente, ao longo de anos de provas de aferição e de exames nacionais, o ministério não conseguiu (ou não quis!) instituir testes fiáveis, isto é, comparáveis de ano a ano e, por isso, avaliadores da evolução global do ensino. A agravá-lo, fala-se agora em limitar o âmbito dos exames de 12º ano às matérias desse ano lectivo e não às de todo o Ensino Secundário, como tem sido regra. As oscilações são constantes.

No fim do ano lectivo transacto, o exame de Matemática do 12º ano teve mais meia hora de tempo de prova, mantendo um conteúdo comparável ao dos anos anteriores. A percentagem de aprovações subiu de 71% em 2006 para 82% em 2007. Na Matemática do 9º ano, o único nível onde houve um plano de acção ministerial específico, a percentagem de aprovações desceu de 37% para 27%. No Português do mesmo nível escolar, a percentagem de aprovações subiu de 54% para 86%. São oscilações espantosas. Alguém acredita que correspondam a mudanças reais nos conhecimentos dos alunos?

Uma das conclusões mais unânimes dos estudos internacionais é a da grande inércia dos sistemas de ensino. Os resultados reais mantêm-se semelhantes ao longo de anos e só muito lentamente mudam. Em Portugal, aquilo que os alunos de facto sabem também tem mudado pouco. O que tem mudado, e muito, são os exames. Querendo moralizar o sistema de ensino é indispensável produzir exames fiáveis, comparáveis ano a ano.

Estamos a começar um novo ano lectivo. Imagine-se um professor dedicado, tentando este ano dar mais atenção às deficiências básicas dos seus alunos e desdobrando-se para incentivar ainda mais os melhores. Imagine-se um casal que resolve investir mais no seu filho, acompanhando diariamente os seus estudos. Imagine-se um jovem aluno do 12º ano, ambicionando notas elevadas, para poder entrar no curso que escolheu. E pense-se agora que as notas finais vão depender em larguíssima medida não do trabalho do professor, não do esforço dos pais e não do trabalho do aluno, mas sim da maneira como este ano forem feitos os exames.

É difícil trabalhar numa escola assim! Generalizar e reformular a avaliação é uma das tarefas mais urgentes do nosso sistema de ensino. Conte-se com os professores que gostariam de ver o resultado do seu trabalho honestamente medido. Conte-se com as famílias que começam a perceber o logro dos progressos fictícios. Não se conte com o «eduquês».

«Expresso», «Actual» - 27 de Outubro de 2007

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2 Comments:

Blogger alf said...

Este texto aborda 2 temas muito diferentes: o ensino e a avaliação do ensino.

Quanto à avaliação do ensino, estou de acordo em diversos aspectos, embora as falhas aqui, em parte, também possam resultar não de uma política do ministério mas de um defice de competencia de quem realiza as provas.

Quanto ao ensino, há duas coisas que é preciso ter presente.

Uma é que a escola é como um hospital, tem de ensinar os alunos como o hospital tem de curar os doentes. Chumbar não é opção, como matar doentes pouco colaborantes não é opção médica. Esta simples e óbvia verdade parece não entrar na cabeça de muitos criticos do sistema de ensino. Seria facilimo gerir a escola se não fosse isto. Como o era antigamente. Por isso é que ao 25 de Abril existia 1% de licenciados em Portugal.

a outra coisa é que neste pais atrasado, onde metade dos pais são praticamente analfabetos, muitas crianças ainda entram na escola sem qq preparação mental para tal.

Cabe ao professor, face ao grupo de alunos que lhe calhou em sorte, encontrar as soluções pedagógicas mais adequadas. Por isso é que o professor está suposto ser alguem pedagogicamente preparado e é tão bem pago - se fosse para executar um programa superiormente definido, qualquer pessoa com habilitações minimas poderia dar aulas aos primeiros anos pelo ordenado mínimo, não é?

Por isso, os programas do ministério têm de ser suficientemente vagos para permitirem aos professores adequaram o seu trabalho aos alunos que têm.

O Nuno Crato defende opções cujas consequências desconhece por certo, não tem idade para tal. Eu tenho, e sei a que conduzem as opções que ele defende!

Outras ideias dele parecem-me simplesmente populistas. Como a da máquina de calcular. Todas as pessoas com dificuldade a matemática são contra o uso da máquina de calcular na escola. No fundo, sinal do seu trauma com a matemática e das suas dificuldades com a tecnologia em geral. O uso da máquina de calcular visa exactamente que a próxima geração tenha menos dificuldades do que esta. As lojas de brinquedos estão cheias de maquinetas baseadas em máquinas de calcular destinadas a ajudar as crianças com a matemática. A máquina de calcular fascina as crianças para a matemática, ajuda-as a aprender a tabuada.

Faltou-lhe falar de uma coisa: a avaliação dos professores. Isso é fundamental! Os chineses resolveram, ao que parece, esse problema: os alunos são avaliados anulamente e os professores pagos em função do progresso que conseguiram para os seus alunos! Não acham uma boa ideia?

9 de novembro de 2007 às 18:31  
Anonymous Anónimo said...

Dois reparos:

1-«Chumbar não é opção, como matar doentes pouco colaborantes não é opção médica».

Acabou de morrer uma doente que, sendo Testemunha de Jeová, recusou a transfusão que a podia salvar.

Considerando a comparação, se um aluno não quer MESMO estudar, pouco há a fazer. Ou, pelo menos, há limites para o que se pode fazer.

--

2-«...por certo, não tem idade para tal. Eu tenho (...)»

Estive a ver o perfil de "Alf".
A idade do Nuno Crato não anda longe da sua. Mas não é grave. Os assuntos que aborda merecem ser discutidos, passando por cima dessa frase de teor paternalista.

9 de novembro de 2007 às 20:03  

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