1.10.07

Coração de manteiga

Por Alice Vieira
NÃO SEI SE HÁ CARAS NORMAIS, não sei sequer o que é uma cara normal, mas ele tinha uma cara normal. Lembro-me de ter pensado isso quando olhei para ele, depois de tudo, muito calmo, como se nada se tivesse passado, acho mesmo que nem sequer pediu desculpa, e de resto já nem teria a quem, o outro correra porta fora, possivelmente com medo de lhe partir a cara. Eu acho que, se fosse comigo, era o que teria feito.
A sala de espera do consultório de um dentista é aquele estranho lugar onde geralmente ficamos em dia com as desgraças, amores e desamores de gente certamente muito importante porque as suas fotografias enchem páginas e páginas das revistas, mas de quem nunca ouvimos falar. Às vezes, no final, reparamos que essas notícias já têm mais de um ou dois anos, mas isso que importa, o tom de irrealidade é o mesmo, e o que é preciso é que a gente fique mais calma para enfrentar o que nos espera quando a empregada abrir a porta e chamar pelo nosso nome.
O rapaz tinha sido chamado antes de mim e confesso que nem tinha reparado nele. Mas ali estava ele de novo, um ar muito preocupado, a perguntar se alguém tinha visto a carteira, só podia estar ali, ele lembrava-se até de a ter aberto, por isso tinha de estar ali. Mas ninguém tinha visto a carteira.
Ao balcão, um homem apressava-se a pagar a conta, abanou a cabeça, também não a tinha visto, e saiu.
Na sala, levantámo-nos todos, revirámos almofadas dos sofás, olhámos por todos os cantos, e nem rasto. O rapaz garantia que só podia estar ali, o que nos tornava a todos suspeitos.
"Devo tê-la deixado cair aqui", repetia ele,aflito, a carteira tinha, segundo afirmava, os cartões todos e muito dinheiro, "e agora?" A empregada garantia que a sala não tinha buracos, se ele a deixara ali, ali tinha de estar, o pior é que não estava, e o rapaz olhava para cada um de nós, e nós olhávamos uns para os outros como se fôssemos cúmplices de coisa nenhuma.
"Tenho de ligar para casa, a pedir que me tragam dinheiro", murmurou, tirando o telemóvel do bolso das calças.
É então que a porta da rua se abre e regressa o outro homem, o que acabara de pagar a conta ao balcão. Tem uma carteira na mão e, com maus modos, estende-lha:
"Tome lá."
O rapaz olha e nem pergunta nada, não percebe o que aconteceu, e o outro encolhe os ombros e diz:
"Esta semana já fui roubado três vezes, por isso quando há bocado vi a sua carteira no chão decidi que me ia vingar. Mas quando cheguei à rua vi que você tinha muito dinheiro e uma data de cartões e ainda podia arranjar uma data de chatices, e, olhe, arrependi-me."
O rapaz pegou na carteira e correu escada abaixo.
O outro encolheu outra vez os ombros, olhou para nós todos como se tivesse feito uma coisa absolutamente normal, e murmurou:
"O meu mal é ter um coração de manteiga".
Abriu a porta e saiu.
E a empregada até trocou o nome do doente seguinte.
«JN» de 30 de Setembro de 2007

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1 Comments:

Blogger bananoide said...

Há gente com muita lata...
Então o mal do homem é ele ter um coração de manteiga. Por se ter arrependido de cometer um crime?

Enfim...

2 de outubro de 2007 às 20:02  

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