"Sputnik"
Por Nuno Crato
TINHA EU CINCO ANOS quando ouvi um nome novo e curioso: «Sputnik». Não me lembro desse momento, porque de pouco ou nada me lembro dessa altura, mas sei que anos depois a palavra mágica continuava a ser ouvida. E as conversas eram estranhas. O meu pai explicara-me que se tratava de um satélite artificial da Terra. O primeiro. E que tinha sido lançado pela União Soviética, uma país distante e misterioso, que se identificava com «a Rússia», aquele lugar de que se falava a propósito de uma estação de rádio que era proibido escutar, dos pastorinhos de Fátima e de muitas outras coisas. Sabia-se, por exemplo, que Salazar não gostava da Rússia e, por isso, ao falar do Sputnik falava-se mais baixo e olhava-se à volta. Para mim, que era muito miúdo, era tudo um jogo misterioso.
Falava-se também de um professor universitário português que tinha dito que o Sputnik não existia, que era uma arma de propaganda comunista, pois era cientificamente impossível haver um satélite artificial da Terra. De repente, deixou de se falar desse professor universitário, pois os Estados Unidos tinham também colocado um satélite no espaço.
Anos mais tarde, muitos anos mais tarde, tentei reconstituir o que se passara. Ao que parece, o professor universitário não era um, mas sim dois: um em Lisboa e outro no Porto. Este último foi durante muitos anos alvo de chacota por parte dos seus alunos. O primeiro penso que também. Nunca consegui, no entanto, esclarecer completamente o que se passara. As lendas abundam, mas nomes concretos, declarações, registos, documentos, tudo isso falta.
E gostaria de esclarecer o que se passara pois creio que o episódio foi revelador e sintomático. Face aos progressos científicos de outros países respondia-se com desdém. E o desdém não era só dirigido «à Rússia». Era dirigido também aos Estados Unidos da América, país pelo qual Salazar nunca morreu de amores. Só alguns anos mais tarde percebi por que os progressos científicos dos norte-americanos eram também desdenhados.
Foi preciso passarem 12 anos. Lembro-me de ter visto na televisão imagens confusas de algo muito mais arrojado do que um satélite. Estava na praia do Baleal e a televisão existia no nosso país há poucos anos. Pouca gente a tinha. O aparelho onde vi as imagens estava num café cheio de gente. Tão cheio que era difícil aproximarmo-nos do écran. Lembro-me que os meus pais estavam em Lisboa nesse dia. Como não tinham televisão, foram à Baixa, onde havia aparelhos a funcionar nas vitrines das lojas. Foi daí que viram as mesmas imagens que eu estava a ver. Imagens trémulas, pois tinham viajado 384 milhares de quilómetros. Era 20 de Julho de 1969. As imagens mostravam Neil Armstrong a pisar o solo da Lua.
Lembro-me de amigos dos meus pais acharem toda essa curiosidade e todo esse entusiasmo despropositados. Afinal, quem tinha aparecido na televisão eram americanos. Só teriam ido à Lua por dinheiro e despeito. Os russos tinham estado sempre à frente na corrida ao espaço, diziam, e os norte-americanos apenas tinham conseguido sucessos na fase final...
Nunca percebi muito bem como era possível que pessoas inteligentes pudessem rejeitar avanços científicos e tecnológicos. Como era possível haver professores universitários que escondessem a cabeça na areia dizendo que o Sputnik não existia?! E como era possível não se estar emocionado com a chegada do homem à Lua?! É de facto estranho, mas revela uma atitude que persiste. Ainda há poucos anos se ouviram intelectuais portugueses a protestar com os gastos na exploração de Marte.
Vou prosseguir a minha história. Passados outros tantos anos, fui estudar para os Estados Unidos, país que na altura não me fascinava especialmente, mas de onde regressei, quase 15 anos depois, completamente seduzido. Aí percebi o que se tinha passado depois do Sputnik. Ao contrário de esquecer a sua existência, os norte-americanos reagiram sacudindo a fundo a sociedade.
Em todo o lado se pensara em mudança. Começando no ensino. Reviram-se os programas, criaram-se escolas de elite, estreitaram-se as relações entre o ensino superior e o pré-universitário, estimularam-se programas de investigação. Preparou-se uma nova geração para a ciência. O Sputnik de 1957 criou ondas de choque que se propagaram até ao sucesso do programa Apolo de 1969.
No meio disto há um pequeno facto histórico pouco notado. O Sputnik russo foi lançado em Outubro de 1957. O primeiro satélite norte-americano foi colocado no espaço em Janeiro de 1958. Três meses mais tarde. Apenas três meses. Isso explica por que razão os críticos portugueses do Sputnik se calaram. E leva a pensar nas origens da «onda de choque» que se propagou pelos Estados Unidos. O «efeito Sputnik» foi consciente. Havia a vontade de mudar, e o satélite russo não foi mais que o pretexto.
Apesar de mudanças brutais e de progressos imensos desde o Portugal salazarista de 1957, vivemos hoje uma situação que tem alguns paralelos com a dessa época. Continuam a existir responsáveis políticos que pouco se preocupam com o nosso atraso científico. E continuam a existir académicos que o negam ou subestimam.
É certo que existem hoje muitos jovens cientistas que se destacam no panorama internacional e que orgulham o país. É certo que começam a aparecer nomes portugueses citados na imprensa internacional. É certo que se podem hoje ler nomes de universidades e institutos de investigação nacionais em artigos na Science, na Nature ou noutras revistas internacionais onde a nossa presença era, ainda há pouco, praticamente inexistente. O facto orgulha-nos, mas, tal como o Sputnik, pode levar-nos a duas atitudes opostas. E a realidade é que a ciência portuguesa continua numa situação de atraso relativo entristecedora. Tudo o que dissemos sobre os nossos progressos podem muitos países semelhantes ao nosso, em dimensão, desenvolvimento, cultura e produto económico, dizê-lo com cem vezes mais propriedade. Há ainda muito a fazer. Muitíssimo.
* * *
Talvez as minhas reminiscências pessoais revelem algo do que se passava há algumas décadas no nosso país, com um lastro que se prolonga pela actualidade.
Mas é preciso olhar para o futuro. Não quero nem posso apresentar uma política para a ciência portuguesa nos próximos 30 anos. Mas há coisas que se sabe que devem ser feitas e que não estão a ser feitas. De pouco vale ser-se grandíloquo, quando há problemas elementares que não são enfrentados.
Uma coisa se sabe. É a mais falada e por isso não vale a pena insistir muito nela: o financiamento dos projectos de longo prazo e os compromissos internacionais não podem ser levianamente quebrados. Parece óbvio, mas qualquer cientista português sabe como tem sido difícil que o Estado português cumpra, ao menos, os compromissos internacionais em instituições como a Agência Espacial Europeia e outras a que já nos associámos. A participação do país nesses consórcios científicos internacionais tem tido um alcance imenso. Toda a gente sabe que é quase impossível fazer física de partículas ou astronomia se não se pertencer a agrupamentos internacionais com capacidade financeira e técnica para construir e manter os grande laboratórios e grandes observatórios que levam a ciência mais além.
Quando falamos em estabilidade financeira, devemos estendê-la aos laboratórios e centros de investigação nacionais. Não é possível avançar programas de investigação se não existirem algumas bases estáveis, não dependentes de candidaturas de curto prazo, nem de projectos imediatos ou de financiamentos voláteis. Mas paremos aqui, pois o financiamento não é o único problema nem talvez o essencial. Há outras coisas que também se sabem.
Uma delas é a educação. É sempre possível surgir um ou outro jovem brilhante, mas não é possível que se crie um clima favorável ao surgimento de cientistas se a educação não sofrer uma mudança radical, do nível básico ao universitário. Também aqui há ideias grandiosas, mas há coisas que se sabe que devem ser feitas e que podem ser decisivas, mas para que falta coragem política. Adianto algumas. A primeira é a formação de professores de todo o ensino pré-universitário e a sua selecção e colocação — bastaria, por exemplo, instituir um exame de entrada na docência para obrigar a reforçar essa formação sem ser preciso iniciar intermináveis reformas. A segunda é a instituição de exames externos às escolas em várias etapas do ensino. A terceira é a instituição de sistemas de avaliação dos manuais escolares. A quarta, a mais polémica, mas a mais importante para o incentivo de vocações científicas, é a diversificação e flexibilização do ensino.
De momento, o ensino é tão rígido que é impossível a um jovem pré-universitário concentrar esforços num conjunto alargado de cadeiras de áreas científicas e terminá-las mais cedo. O ensino continua a funcionar por currículos e programas rígidos e não permite que os mais dotados e interessados prossigam um caminho próprio e a ritmo acelerado. A mediania atrasa o progresso - uma verdade tão premente no ensino básico e secundário como, surpreendentemente, no universitário, onde se instituiu apenas formalmente um sistema de créditos, sem se perceber que a ideia subjacente ao mesmo é a da flexibilização de currículos e de ritmos.
Factor decisivo da qualidade de um ensino que incentive a formação de jovens cientistas é a própria actividade dos docentes. Infelizmente, com excepções muito honrosas, a maioria dos docentes universitários continua afastada da investigação. E continua por razões compreensíveis: a recompensa do esforço de investigação não é feita pela universidade, quando o é, senão numa fase inicial de promoção e contratação definitiva; há um lastro de inactividade de muitos anos; as cargas de ensino são idênticas para os docentes que são simultaneamente investigadores e para os que não o são.
Acresce que o sistema universitário é demasiadamente rígido e extremamente dependente do poder central. Não há flexibilidade de contratação nem de remuneração dos contratados. É difícil concentrar esforços em áreas prioritárias. O sistema universitário continua disperso em institutos ou faculdades, praticamente não existindo universidades, ou seja, agrupamentos de troca e produção do saber em áreas diversas. Um estudante de matemática que queira estudar engenharia de processamento de sinal não tem habitualmente um departamento ao lado onde possa recorrer e tirar uma cadeira por que receba o devido crédito para o seu curso. O mesmo se passa nos estudos mais avançados, conducentes ao doutoramento.
Apesar deste rol de dificuldades, surgiram nos últimos anos algumas experiências positivas, algumas surpreendentemente positivas. Julgo que há nelas vários factores comuns que podem servir de inspiração para as mudanças necessárias.
Em todos os casos de sucesso na investigação científica recente (falamos do fim dos anos 90 ao princípio do século) há uma colaboração clara com equipas internacionais. Essa colaboração pode provir da permanência dos investigadores no estrangeiro durante períodos prolongados, pode provir do contacto com investigadores portugueses radicados no estrangeiro, de iniciativas individuais ou pode, ainda, ser formalizada em acordos oficiais internacionais, como é o caso da Agência Espacial Europeia (ESA) ou do Observatório Europeu do Sul (ESO). É assim que jovens astrónomos portugueses têm conseguido saltar para a as primeiras páginas da imprensa internacional com descobertas de novos planetas e outras igualmente espectaculares.
Em quase todos os recentes casos de sucesso os intervenientes são jovens que se formaram logo de início num ambiente de investigação com projectos internacionais. Nenhum desses casos mediu os seus progressos pela repercussão nacional dos seus trabalhos, nenhum viveu fechado na mitologia de uma ciência nacional pioneira. Todos eles se prepararam fazendo.
Que falta pois ao nosso país para multiplicar os exemplos de sucesso. Falta um sistema educativo que não desperdice os melhores nem dissemine a indiferença perante o conhecimento e a ciência. Faltam instituições universitárias e laboratórios abertos à circulação de docentes. Falta o incentivo da mobilidade e o alargamento às instituições de um sistema de avaliação pelos pares internacionais como se instituiu sabiamente nos centros de investigação.
Que se irá passar nos próximos 30 anos? Os sinais são mistos: alguns pessimistas, outros optimistas.
NOTA: Este texto, incialmente intitulado «Ciência em Portugal: os próximos 30 anos» foi publicado na colectânea 25 de Abril: «Os Desafios para Portugal nos Próximos 30 Anos», Presidência do Conselho de Ministros, Comissão das Comemorações dos 30 Anos do 25 de Abril, Lisboa, 2004.
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7 Comments:
Em 1957, eu tiha 10 anos e lembro-me:
Segundo corria, o tal professor universítário que dizia que o Sputnik não existia chamava-se Varela Cid e era professor de Aeronáutica (no IST?).
Contava-se que a rapaziada, para o irritar, lhe telefonava para casa, dizia «Bip-bip-bip» (que era único sinal que o satélite emitia) e desligava...
Muito bom este artigo do Nuno Crato. Noto apenas que faltaram rasgados elogios ao trabalho do actual governo nesta matéria. Espero que o autor não venha a sofrer consequências. Os tipos que estão no governo são vingativos.
Jorge Oliveira
"E que tinha sido lançado pela União Soviética, uma país distante e misterioso, que se identificava com «a Rússia», aquele lugar de que se falava a propósito de uma estação de rádio que era proibido escutar, dos pastorinhos de Fátima e de muitas outras coisas."
E que tinha sido passado pela UnI, uma universidade distante e misteriosa, que se identificava com «arranjos», era aquele lugar de que se falava a propósito de um canudo de que era proibido falar, dos exames feitos em casa e de muitas outras coisas.
A tradição ainda é o que era...
A Real Regata do Tejo é já amanhã! Mais informações no Atlântico Azul! Juntem-se a nós! TAMBÉM LÁ COLOQUEI O SPUTNIK EM GRANDE DESTAQUE, COM SONS E TUDO!!
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Nunca um texto tão extenso na blogosfera me foi tão fácil de ler até ao fim. Já fiz menção ao texto no vilaforte.blog.com ,em comentário aos 50 anos do sputnik.
pedro oliveira
Excelente texto e excelente retrospectiva. Parabéns!
Provavelmente o Prof. Varela Cid também acredita nisto.
SailorGirl: A banda sonora do Atlântico Azul está excelente. Infelizmente não estou por perto para poder ir à regata.
Um abraço
Como eu, conheço umas largas dezenas de investigadores portugueses que dariam tudo para poder voltar a Portugal e fazer o que mais gostamos no pais em que nos sentimos melhor, mas no qual infelizmente ainda nao somos bem vindos. Aos poucos que conseguem voltar, salvo raras gratas excepçoes, as alternativas a integrar o actual estado de bovinidade da ciência sao practicamente inexistentes. O custo de vida no nosso pais, aliado ao clima seriam factores com que poucos poderiam competir se um instituto de referencia fosse construido em Portugal. A Irlanda, um exemplo a seguir em muitos niveis, conseguiu atrair cientistas de referencia para o seu pais. Como consequencias, o afluxo de investigadores para este pais é cada vez maior. O que tem beneficios também a nivel economico pois uma grande parte dos fundos atribuidos em bolsas tera necessariamente de ser distribuido pela comunidade onde tais institutos se inserem.
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