18.11.07

A birra deontológica

Nuno Brederode Santos
SOU AMIGO DE ALGUNS MÉDICOS e conheço socialmente muitos mais. É gente aberta, pachola e com aquele q.b. de luzes que puxa as conversas mais para cima que para baixo. Quase todos reconhecem até, à puridade, que há algo de errado nas políticas tradicionalmente restritivas do acesso à classe, num contexto em que aqui faltam médicos e ali já não, mas só porque vieram de várias Espanhas. E inquieta-me pensar quais os mecanismos de representação e de formação da vontade da classe para a auto-regulação, porque verifico que eles permitem passar mandato a quem, da grandeza de alma, só tem o rude embrulho da arrogância.
É claro que, em grau maior ou menor, a mesma observação pode ser feita para a organização de todas as profissões ditas liberais (e que, as mais das vezes, já tipicamente o não são). Basta comparar o grau de insatisfação social com o registo das sanções disciplinares aplicadas pelas ordens profissionais, para se poder concluir que o zelo pelas várias deontologias tem por alvo o nível mínimo que defende a própria classe, e nunca o máximo que nos defenderia a todos dos desmandos de alguns deles. Como basta constatar a promíscua sobreposição das suas intervenções, supostamente moralizadoras do exercício da profissão, com o desempenho de funções sindicais e até, não raro, com a tentativa de imposição de lógicas políticas.
Os cândidos terão pensado que, em 1974, o corporativismo descia à cova com o Estado que se dizia corporativo. Mas só mesmo os cândidos. Porque a vontade, indisputada e arbitrária, de Salazar nunca permitiu às corporações serem mais do que um álibi doutrinário para substituição da democracia representativa. Uma Câmara Corporativa de "notáveis" de nomeação nunca foi engulho que se visse. O juízo pessoal do ditador - beato, paternalista e campónio - sempre se impôs aos pareceres dela (que, de resto, as mais das vezes, já provinham de encomendas do poder). Por isso, o corporativismo, que então não chegou a existir, só viu a luz com as liberdades democráticas. Bem nos podemos orgulhar desta nossa abertura de espírito.
A Ordem dos Médicos já não era excepção. Mas, com um senhor encontrado em pesquisas do "procurem o Wally", o qual se arroga o nome - Pedro Nunes - do inventor do nónio e do liceu por onde passei sete anos, tornou-se exemplar. Pelo menos a partir do dia em que, confrontado por jornalistas com casos de atestados falsos ou passados sem a presença física dos alegados doentes, declarou, impante: "Os médicos não são polícias." (E não eram. A pergunta pressupunha até a hipótese de os médicos que passaram os atestados serem cúmplices de ladrões.) Um momento que pedia uma legião de paparazzi, só para memória futura. Depois, foi só ver a canhestra tentativa de empenhar o prestígio da classe no referendo à interrupção voluntária da gravidez, passando do indiscutível direito de qualquer médico a ter opinião na matéria ao nosso dever de sujeição a uma suposta opinião médica (aliás, já só invocável em dois casos aberrantes na União Europeia), para adivinhar uma parte da sequência.
Só não era adivinhável até onde iria ainda a sobranceria corporativa. Ao ponto de recusar acolher, no Código Deontológico, as alterações que a lei geral vai registando, mesmo que por vontade testada em referendo e imposta por lei da Assembleia. O primado da lei esbarra assim num curioso entendimento. O de que, por um lado, uma norma, por contrária que seja a outra que lhe é superior, pode até ser reafirmada, desde que quem a deve aplicar jure, por uma saudinha qualquer, que não a aplicará; e, por outro, o de que o código é dos médicos, pelo que só por vontade deles - ou mesmo só a dos objectores de consciência que a lei respeitou - se fará a conformação dos seus preceitos à legalidade (ainda que as prerrogativas da associação profissional lhe sejam conferidas por lei e tenham a natureza de um mandato colectivo). E se assim o não entende a Procuradoria-Geral da República, tanto pior para ela. Que sabem os procuradores de Hipócrates, se eles são formados em Direito...?
Mas o mais assustador é admitir-se que este boçal atentado ao senso comum possa ser explicado pela iminência de eleições internas na Ordem. E que o poder político talvez prefira esperar por elas para insistir na reposição da legalidade.
«DN» de 18 de Novembro de 2007

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3 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Excelente artigo.

18 de novembro de 2007 às 15:24  
Blogger SG said...

http://leia-la-isto.blogspot.com

Não me conformo que uma lei aprovada na sequência de um referendo não vinculativo se possa sobrepor a princípios éticos com mais de 2000 anos.
Desculpem, mas não me conformo!

18 de novembro de 2007 às 20:37  
Blogger R. da Cunha said...

SG
O senhor é médico? Pode sempre invocar o seu indeclinável direito a não praticar actos que vão contra a sua consciência e a sua ética.
Se não é médico, deixe que cada um deles decida como, conscientemente, entender, desde que repeite a lei da República.
Nenhuma mulher é obrigada é praticar IGV e nenhum médico é obrigado a colaborar nela.
E em Badajós ou em Londres, já é possível?
De falsos farisaímos estamos nós fartos, até aqui.

18 de novembro de 2007 às 20:50  

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