Aprender com o feiticeiro
Por Nuno Brederode Santos
NAS VÉSPERAS DA VOTAÇÃO do Orçamento do Estado para 2008, João Carlos Gouveia, presidente do PS-Madeira, atroava o Paço com uma proclamação de princípios e condições para se evitar que os deputados socialistas madeirenses votassem contra. Genericamente, Gouveia queria uma maior atenção do Estado central ao arquipélago, designadamente através de alguns investimentos de urgente interesse público, com destaque para o reforço local dos meios do Ministério Público e da Polícia Judiciária. A sua ideia, basicamente correcta, era a de não poder o Estado central descurar as suas obrigações nessa lonjura, mais de alma que de corpo, que é a autonomia insular. Sob pena - não o diz ele, mas subentende-se - de ser absolutamente ingrata a tarefa de enfrentar politicamente os métodos de Alberto João Jardim, que cada vez menos se detém em considerações de constitucionalidade e insufla até, ao ritmo das suas conveniências conjunturais, as ameaças separatistas (bastou ver as suas declarações, na recente inauguração da "representação permanente da Madeira", na zona das embaixadas do Restelo, sobre os Ipirangas do seu protegido, o deputado Drummond: Alberto João, que já levou o PSD nacional a apoiar a ideia de uma nova Constituição - atropelando os limites materiais de revisão da actual - considera a sua "divergência" com o independentista Drummond uma coisa saudavelmente democrática). "Nós vamos combater o separatismo pela afirmação positiva do poder do Estado na Madeira", diz Gouveia. E esta intuição de partida está correcta.
De facto, no pouco que, por puro laxismo acumulado, ainda lhe compete, o Estado deve fazer sentir positivamente a sua presença no quotidiano dos cidadãos das regiões autónomas, sob pena de se gerar uma ilusão de vazio que é o melhor pasto do jardinismo. O problema vem depois. Vem quando Gouveia informa que, a não serem cumpridas as suas exigências, os três deputados socialistas da Madeira na Assembleia da República votarão contra o Orçamento do Estado. Ou ainda quando, confrontado com o argumento de que a única disciplina de voto na bancada é exactamente a relativa a essa votação, ameaça os deputados com a perda de confiança política e a sua não recondução na próxima legislatura. Tudo isto na voz grossa e no tom inflexível que melhor caberiam a um partido terceiro em negociação de potência a potência.
O resultado é conhecido. Os deputados votaram com a restante bancada, sem abdicação de tudo fazerem para sensibilizar o seu partido e o Governo para aqueles pontos de vista. Humilhado, Gouveia reiterou a ameaça de consequências políticas. Mas, de momento, o episódio ficou por aqui.
O que importa reter é que a nova direcção do PS-M parece julgar ter descoberto a razão do insucesso daquela que a antecedeu. E pensar que é boa ideia transpor os delírios autonomistas de Jardim perante Lisboa para o plano das relações entre o que é, na substância, um departamento partidário regional e o partido nacional em que se integra. E achar, enfim, que é preciso oferecer aos madeirenses a alternativa de uma espécie de jardinismo de oposição (como se fosse de sucesso a história dos confrontos entre originais e cópias).
A autonomia insular não é tudo o que sobra de quatro ou cinco funções soberanas do Estado, como Jardim pretende fazer crer (e ele próprio não crê, uma vez que advoga uma mudança de regime, através de uma mudança de Constituição). Mesmo que os órgãos de soberania do Estado (que continua a ser unitário) não queiram - irresponsavelmente - travar às claras essa batalha política, a verdade continua visível nos preceitos constitucionais. E muito menos os partidos nacionais, na sua expressão local, são partidos decalcados dessa falsa autonomia, pois a Constituição rejeita os partidos "que (...) tenham índole ou âmbito regional" (art. 51.º n.º 4).
Se o PS quiser continuar a ser um contraponto global à concepção das Regiões e dos partidos nelas implantados, tal como o jardinismo os proclama, não deve perder esta oportunidade para esclarecer tais conceitos junto de João Carlos Gouveia e eventuais seguidores. Com a tolerância que merecem os companheiros e com a firmeza exigida pelas jornadas comuns.
«DN» de 9 de Dezembro de 2007
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