5.12.07

O Último Leopardo

Por Baptista-Bastos
O PROGRAMA CHAMA-SE O Caminho Faz-se Caminhando, centra-se em Mário Soares e é exibido mensalmente na RTP. Uma senhora por lá desfila roupas e futilidades, expondo um provincianismo cosmopolita sem remédio e demonstradamente patusco. Mário Soares merecia outro interlocutor. À vista desarmada, logo nos apercebemos de que a senhora não está à altura da circunstância. Não compreende, talvez por indiferença histórica, ignorância ou módico conhecimento dos factos, o que Paris representou no percurso político, intelectual, cultural e ideológico de Soares.
Ele nomeou pessoas, referiu episódios, indicou lugares que são capítulos fundamentais da resistência antifascista portuguesa. Forneceu pistas, espalhou indícios. A senhora passou alegremente ao lado, adornando o sumptuoso desconhecimento com inexplicáveis risadas. Quem foram Ramos da Costa e Barradas de Carvalho? E Maria Lamas, cujo quarto de hotel estabeleceu o lugar de solicitude, quando tudo parecia perdido? Um faustoso rol de gente, da qual a passeante não curou de saber quem era, quem tinha sido, para conhecimento e instrução dos telespectadores. Deixando escapar a oportunidade de revelar o elo unificador das várias correntes antisalazaristas, e de também noticiar as desavenças e os atritos entre exilados e conspiradores, a prazenteira senhora passeou outro casaco de peles e sacudiu as mãos. Não sem chamar de "você" o homem sábio, paciente e efusivo, que a tratava com educada cortesia.
Pode-se gostar ou não dele: as injustiças do ódio conduzem a comportamentos insensatos e a impulsos condenáveis por insultuosos. Mas o País alguma coisa, e não pouca, lhe deve. A Mário Soares perdoa-se tudo o que a outros nada se esquece. É verdade. Todavia, nos alvoroços da política, nas surpresas da História ou no indefinido perfil dos movimentos sociais, nunca Mário Soares cometeu o delito de ferir a liberdade. Infracção de que nem todos os que dela falam estão imunes.
A infelicidade do programa começa no título, inspirado no belíssimo poema que o espanhol Antonio Machado escreveu, como desdobramento entre o papel social e os acasos da fortuna. Inadequado à trajectória de Soares, cuja expressão pessoal não se limitou a uma obediência às casualidades, mas sim em desenhar o seu próprio destino histórico. A reivindicação de uma particular autenticidade corresponde aos diversos papéis interpretados, nos últimos 60 anos, pelo fundador do PS. Depois da morte de Álvaro Cunhal, ele é o último leopardo de uma grande geração de políticos, que criou a ilusão da mudança.
A senhora passeante pelo programa não percebe nada destas coisas. E nós não percebemos o que anda ela por ali a fazer.
«DN» de 5 de Dezembro de 2007

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1 Comments:

Blogger Contacte-nos said...

Também eu vi o episódio que refere, nomeadamente quando, na Livraria que Mário Soares frequenta em Paris, folheando livros fala sobre Victor Hugo (se bem me lembro), disserta sobre os seus anseios, processa a informação sapientemente recolhida dos escritos, conta estórias de lugares, e a Senhora, desconfiada lhe pergunta por Beckett; Mário Soares fala sobre Vitor Hugo, sobre os seus dotes, de pintor, escritor, poeta, e a Senhora lhe pergunta por Beckectt...Mário Soares disfarça e quando desce para o piso inferior da Livraria, aponta para uma fotografia e diz:
- Olhe, aqui tem o seu Beckett!
- Gosta? Pergunta a Senhora.
- Nem por isso, ele responde.

Mais classe é impossível.
Óptimo artigo.

5 de dezembro de 2007 às 15:03  

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