3.1.08

Sobre a morte nas estradas portuguesas

Por Carlos Fiolhais

O “Expresso" de hoje [29 Dez] noticia que há manipulação nas estatísticas do número de mortos nas estradas portuguesas. Nós que pensávamos que havia muitos, ficamos a saber que afinal ainda há mais. Indignado, recupero um texto meu publicado no “Primeiro de Janeiro” em 24/1/2001 porque infelizmente me parece ainda actual.
OS ESTRANGEIROS QUE NOS VISITAM não deixam de reparar numa das maiores senão mesmo a maior das idiosincrasias nacionais: a velocidade e o descuido com que se circula nas nossas estradas. Somos um dos países da Europa com maior taxa de sinistralidade rodoviária. Pode dizer-se que a morte espreita não só em cada curva mas também em cada recta.
O escritor norte-americano Richard Hewitt que, no seu livro “Uma Casa em Portugal” (Gradiva), já tinha apontado a tendência suicidária dos automobilistas portugueses (dizia ele, com humor negro, que os portugueses ao volante tentam denodadamente subir para cima das árvores e alguns conseguem), voltou em “Regresso à Casa em Portugal” ao mesmo tema. Com ironia, escreve ele que reparou como os portugueses conduziam os “carrinhos de choques” nas feiras populares. Verificou, ao fim de prolongada observação, que a regra era os condutores das feiras tentarem evitar os choques. “Precisamente ao contrário da vida real”, remata Hewitt.
É simplesmente inacreditável que nós próprios não consigamos ver-nos com o mesmo distanciamento crítico que os estrangeiros e extrair as inevitáveis conclusões. Que não haja uma mobilização geral sobre o assunto, a começar nos médicos, engenheiros e outros profissionais qualificados e a acabar nos cidadãos mais anónimos. Que não haja a actuação necessária dos políticos e das polícias. Que não se criem medidas de excepção para acabar com a excepção que somos na Europa.
Apesar de não ter estudado o assunto com a profundidade que ele merece, tenho uma teoria, admito que não científica, sobre o assunto. Estou em crer que os portugueses nutrem um desdém profundo pelas leis da física (nomeadamente as duas leis que presidem aos choques: a lei de conservação da energia e a lei de conservação da quantidade de movimento) e não acreditam que elas se apliquem aos seus próprios veículos. Acreditam, quando muito e vagamente, a acreditar nas notícias dos jornais, que essas leis sejam eventualmente aplicáveis aos veículos dos outros. Dizendo a mesma coisa de uma outra maneira: os portugueses acreditam em milagres.
Essa tendência para ignorar as leis naturais substituindo-as pela fé em milagres é tão ancestral como o país. Pois não começou Portugal por altura do famoso milagre de Ourique, gralas ao qual os mouros, em número muito superior a nós, acabaram juncando o chão rés-vés-campo-de-Ourique? Foi preciso o historiador Alexandre Herculano, vários séculos depois de Ourique, para ficarmos a saber que essa batalha nunca podia ter ocorrido em Ourique no Alentejo pois nessa altura o país terminava pouco abaixo de Coimbra (há um Chã de Ourique perto de Coimbra, mas também aí não ocorreu nenhum milagre).
Mais tarde, ficou famoso o milagre de D. Fuas Roupinho no Sítio da Nazaré, um milagre parecido com um moderno acidente de viação. Recorde-se a história, para quem já não se lembre dela. A alimária de D. Fuas circulava a grande velocidade por um caminho que desembocava num precipício sobre o mar. Pois o veículo não esteve com contemplações: meteu os travões a fundo nas patas de trás e ergueu as da frente num número digno de figurar no melhor circo. O condutor agarrou-se ao veículo como pôde, mesmo na ausência den cinto de segurança. Pouco importou que a energia e a quantidade de movimento se tivessem de conservar, pois a física ainda não tinha nascido e essas palavras do seu jargão técnico ainda nem sequer tinham sido criadas. Importou sim que D. Fuas sobreviveu, como prova a capela edificada no Sítio.
Pois hoje circulamos em veículos que têm bastantes mais cavalos do que o único que tinha D. Fuas. Mas continuamos a acreditar que o milagre vai acontecer quando, velozes, deparamos com uma curpa muito apertada, ou quando fazemos uma ultrapassagem nos limites.
Se, nas circunstâncias, me é permitido como a Hewitt algum humor negro, sempre direi que há males que vêm por bem: felizmente que esta crença nacional no milagre se tem vindo a desvanecer com o número assustador de mortos. Os mortos já não acreditam em milagres. Muitos vivos a quem o caso toca mais de perto por lhe terem morrido familiares e amigos (haverá alguma família portuguesa sem vítimas de trânsito?) também já não acreditam. As leis da física, que se aprendem ou se deviam aprender na escola, estão a ser cada vez mais interiorizadas, embora de uma maneira trágica.
«DE RERUM NATURA» - 29 de Dezembro de 2007

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1 Comments:

Blogger Sepúlveda said...

As brigadas de trânsito patrulham as auto estradas, que são dos locais com menos vítimas.
Se há auto estradas mal projectadas/construídas, então é melhor não falarmos de muitas outras vias e da sua sinalização.
O cidadão comum começou a arrebitar as orelhas quando as notícias acerca do assunto passaram a ser as de abertura dos jornais... mas logo que o sensacionalismo infectou essas notícias, toda a gente passou a ligar mais à espectacularidade dos números e a querer saber menos acerca dos dramas associados.
É bastante claro que... milagres não há.
Ah!... e muitos maus exemplos até vêm de cima...

4 de janeiro de 2008 às 12:58  

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