7.3.08

Mesa para dois

SENTA-SE MUITO DIREITO, raramente sorri quando o servem, sejam empregados ou mesmo o patrão. Alisa com grande cuidado o casaco, puxa as calças no sentido de proteger os vincos irrepreensíveis e, com um toque, certifica-se de que o nó da gravata está no seu sítio. Estuda a descrição dos pratos do dia com a atenção de um general a analisar uma ordem de batalha, apesar de almoçar naquele restaurante vai bem para trinta anos. Lê a lista dos vinhos, embora sempre queira o mesmo, determinada meia garrafa de branco, e faça sempre a mesma recomendação:
- Gelado, mesmo muito gelado.
E depois de dizer essas palavras sábias, encosta-se ao espaldar da cadeira com a força de quem espera que alguém venha tentar arrancá-lo dali.
- Duas pessoas, não é verdade, senhor Domingos?
- Duas pessoas, evidentemente. Mas eu não espero.
Há quase trinta anos que almoça neste restaurante todos os dias úteis. Sozinho, hirto, saboreando pequenos goles do vinho, maduro no Inverno, verde no Verão. À sua direita, jaz sempre um talher, um copo e um guardanapo que em todo este tempo nunca foram utilizados.
- Podemos servir, senhor Domingos? Senão o peixe arrefece...
- Amigo não empata amigo. Sirva, que, se entretanto chegar as desculpas são-me devidas.
Quando um empregado começa a trabalhar naquele restaurante explicam-lhe, invariavelmente, quem é o Sr. Domingos, o que come, que é sempre ou linguado grelhado ou filetes de pescada. E explicam-lhe que bebe sempre branco, maduro no Inverno, verde no Verão. E baixando a voz pedem ao novo empregado que não preste demasiada atenção ao talher que o Sr. Domingos exige vai para trinta anos, naquela mesa para seis pessoas, junto à janela, onde acaba sempre por comer sozinho.
Invariavelmente às doze e quarenta, o Sr. Domingos entra no restaurante. É uma hora estratégica, pois cinco minutos mais tarde a casa começa a encher-se e deixa de haver mesas vagas. O Sr. Domingos nunca fez uma reserva.
- Um aperitivo, senhor Domingos?
- Pode ser o costume. Um porto seco
- Duas pessoas, senhor Domingos?
- Duas pessoas, evidentemente.
Pode pensar-se que gosta de comer sozinho. Mas se esse é o caso, já não se entende que não recorra a um jornal, livro ou revista para afastar os importunos.
Poderia explicar o dono do restaurante, onde há quase trinta anos o Sr. Domingos almoça, que este é o dono de uma ourivesaria. Foi o Sr. Domingos, aliás, quase engenheiro. Estudava no Instituto Superior Técnico, quando o pai, fundador da ourivesaria que se dizia pertencer ao Sr. Domingos, se finou. Segundo a mesma fonte, ou seja, o dono ao restaurante, na sua crónica para entreter secos e molhados diz à boca pequena que o pai do Sr. Domingos, o ourives, teria falecido no supremo esgotamento de um coito pós-cozido à portuguesa, portanto a uma quinta-feira, num escândalo logo abafado, como a moral impõe, ao qual terá sobrevivido uma extrovertida manicura de uma barbearia da Baixa.
Instado pela mãe («E agora, filho, quem toma conta do negócio, o que vai ser de nós?»), o Sr. Domingos deitou as propinas às malvas, nunca mais pôs os pés no Instituto Superior Técnico e atirou-se às escravas, medalhas, anéis, correntes de relógio, brincos e outros pequenos objectos que são minúsculos sinais exteriores de desafogo, ou títulos de aforro, e que ele pacientemente também vende através de pequenos pagamentos mensais.
Ninguém se atreve a falar ao Sr. Domingos.
Todos se ficam pelo cumprimento de cabeça e só quem trabalha naquele restaurante ou crianças que vendem pensos ou lotaria ousam dirigir a palavra ao Sr. Domingos.
- Duas pessoas, senhor Domingos?
- Duas pessoas, evidentemente.
Um dia passou pelo restaurante um empregado que ali pouco tempo trabalhou mas que deixou uma dúvida profunda, que permaneceu para além da sua efémera estada.
Um dia de calor, às quatro e meia da tarde, à mesa com todos os seus colegas, incluindo as carnes distendidas e suadas das cozinheiras, servindo-se de mais grão, esse ladino empregado lançou inquietações que sobreviveram anos. Referindo-se ao Sr. Domingos, a quem pela primeira vez servira nesse dia, o jovem perguntou:
- Mas afinal o gajo está à espera de um homem ou de uma mulher?
Naquele calor húmido, à volta dos restos concentrados do bacalhau com todos, do chispe à transmontana e do arroz de tomate, pairou uma grande inquietação. Nunca ninguém pensara nisso, e logo ali as opiniões se dividiram. Para uns, o desprendimento com que O Sr. Domingos dizia não esperar mais levava-os a ter a certeza, nascida naquele instante, de que se tratava de um homem. Para outros, que julgavam por suspiros que garantiam ter escutado, era irremediavelmente uma donzela quem há perto de trinta anos faltava, todos os dias, ao almoço com o Sr. Domingos.
Esta semana, o mistério ficou deslindado. E, ainda ontem, os empregados e até o proprietário do restaurante sorriam para o Sr. Domingos.
A descoberta ficou a dever-se à entrada de uma velha senhora, que, muito digna, mas envergonhadamente, procurava vender pequenas rosas vermelhas aos homens que ali almoçavam acompanhados por mulheres. Mas nem a doçura da companhia lhes adoçava o gesto seco e sem apelo com que afastavam a velha senhora que vendia pequenas rosas, digna mas envergonhadamente, no restaurante onde o Sr. Domingos almoça, todos os dias úteis há perto de trinta anos.
No meio de um silêncio súbito e de muitos olhares cruzados, o Sr. Domingos disse alto e bom som:
- Deixe ver uma rosa dessas para a minha amiga que pode ser que apareça hoje.
E ontem já o empregado perguntou ao Sr. Domingos:
- Mesa para si e para a sua amiga, não é verdade senhor Domingos?
- Claro, como sempre. Nunca se sabe quando ela vai aparecer. E dois copos para o branco gelado. Mesmo muito gelado.
Lisboa, 1987

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