O permanente sobressalto
Por Nuno Brederode Santos
SE O DESTINO DE UM HOMEM não lhe é imposto por tábuas da lei divina, também não é pedra lisa que ele talhe a golpes de vontade. De resto, uma e outra concepções, de tanto simplificarem as coisas, de tanto sonegarem o vário, o complexo e o misterioso, acabam roubando à palavra qualquer sentido ou préstimo. Muitos nascem a poder chegar à glória, mas ninguém lhe está predestinado. Daí que os poucos casos que todos conhecemos apenas sobressaiam de entre a multidão dos que não conseguiram lá chegar. Muitas vezes até para se estatelarem no ridículo ou na infâmia. George W. Bush ilustra isto muito bem. Sarkozy, se não aprender com o impacte no real destes seus primeiros ímpetos, arrisca o mesmo. E à nossa ínfima e doméstica escala, Luís Filipe Menezes é cria da mesma ninhada. Mas, ao menos e já que está na oposição, podia talvez sentar-se, pausar a respiração e consultar serenamente um calendário. Tomando posição por si mesmo contra o aguilhão da ansiedade, a errância dos instintos, o sono da inteligência e a pressão dos humores.
Talvez esse exercício de serenidade devesse começar por ter em conta que o seu acesso à liderança lhe foi dado pelos votos. Ele não é uma potência ocupante, nem tem de instalar o poder resultante de um golpe de Estado. Não tem de substituir à pressa a sua herança por uma nova doutrina global, novas caras, novos símbolos e cores. Não tem de mudar as regras eleitorais, reintroduzindo a cacicagem e o império do aparelho. O que para ele está em causa é "aguentar" um ano e meio, e não fundar um "Reich" para mil anos. A doutrina não se improvisa; as caras novas, que ainda nada provaram, quererão logo escorraçar as antigas; e os símbolos transportam cargas afectivas que um desenhador de logótipos, por modernaço que seja, não tem como conhecer. Mas se nenhuma destas pressas tem sentido, pior ainda é a de fechar o partido num cofre-forte e amarrá-lo à cintura do seu destino pessoal. Manipular as regras que lhe permitiram chegar ao topo para bloquear a mesma oportunidade aos outros é pior ideia do que urinar contra o vento. Porque não é nas regras internas que o seu destino final se vai jogar e porque barrar o caminho ao destino presumido de alguns outros contende com as aspirações de muitos mais. (Além, é claro, de ser batota, mas eu não queria complicar o problema saindo do registo amoral que o fez nascer).
A ideia de um pacto de sangue com as bases e contra os barões também não promete trazer-lhe muitas alegrias, sobretudo quando ele próprio se priva do instrumento que é o desafio para "directas". Se os barões são essa gente tenebrosa que só quer uma vida regalada e não frequenta a happy hour das bases, então o que mais os põe em respeito é o risco de ter de assumir as suas críticas na expressão última do confronto eleitoral. Poucos o fazem, como Menezes aprendeu com Marques Mendes. Por isso, se foi um erro ameaçar fazê-las a eito, outro, bem pior, é fechar-se no torreão e declarar, sem condições ou nuances, recusá-las. Isto é entregar as muralhas a um sitiante sem pressa. Porque, fora das conjunturas eleitorais (internas ou externas), os barões fazem o rosto do partido no quotidiano do país que avança. E têm vida e mundo para criar os piores embaraços aos desasados pretorianos da direcção partidária. A leviana grosseria com que Capucho foi tratado levou a mais humilhante resposta: é pelas regras basistas de Menezes que ele se fez Cascais na resistência. O disparatado episódio do chamamento de Rui Rio ao Conselho de Jurisdição (com Menezes, Ribau e o próprio presidente do órgão a anteciparem uma "sanção ética") parece culminar agora com a olímpica recusa do visado em se sujeitar a tão insólita liturgia.
Tudo isto comprova o pior da cosmogonia suburbana em que assentam a cultura e a vocação política de Menezes: o império da táctica sobre a estratégia, da manchete sobre o ciclo político, da cor da gravata sobre o enunciado de medidas (ou, no futebolês de que ele gosta, o primado da finta sobre o remate). Nas suas mãos, o poder esboroa-se. Quer um estatuto como um fim pessoal e não como um instrumento para a realização de objectivos políticos. Chamem-lhe tudo, mas ambicioso não.
«DN» de 16 Mar 08
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