12.3.08

O poder da 'rua'

Por Baptista-Bastos
AS IMPRESSIONANTES MANIFESTAÇÕES registadas nas últimas semanas, e continuadas um pouco por toda a parte, assumem a forma e o conteúdo de um severo depoimento contra o Governo. Não se trata de turbulências comunistas, como já o disse José Sócrates e, iradamente, o repetiu Augusto Santos Silva, cujas "verdades" surgem cada vez mais avariadas. A "rua" foi a demonstração categórica do desequilíbrio entre quem pensa em termos estatísticos e quem é vítima desse equívoco. E uma vigorosa afirmação de civismo. Há dias, conversei com Raul Solnado sobre a natureza do Estado e o domínio pelo domínio exercido, repetidamente, pelo Governo, esquecido de que a força da República é a virtude, e a sua fraqueza a soberba. Sobre ser um amigo de há mais de 40 anos, Solnado é homem sábio, de frase pensada e advertida inteligência, com quem apetece discretear. Disse: "Gostaríamos de sentir que este Governo tem vontade de transformar e de modernizar o País. Por outro lado, a sua arrogância e autismo quer arrastá-lo para uma democracia musculada, o que é assustador. Eles distanciaram-se de nós."
A tentação de se construir contra o outro destrói o laço social, fonte e apoio do tecido colectivo, assinalado por Solnado como silogismo. E essas regras perturbadoras têm por objectivo limitar a interferência cívica e proteger o autoritarismo governamental. O facto de este Governo dispor de maioria absoluta não significa que actue em absolutismo. Há, manifestamente, ausência de diálogo e um poderoso dispositivo autoritário que liquidam a coexistência de duas sinalizações fundamentais em democracia: a dos governantes e a dos governados.
Perdeu-se de vista o reconhecimento da igualdade, do direito de protesto e do dever de memória. Este Governo criou uma tensão dramática de tal ordem e um destempero de tal jaez que levaram o primeiro-ministro a afirmar-se indiferente para com a imponente manifestação dos professores, invocando uma "razão" cuja natureza só poderá ser explicada através da nebulosa em que ele parece viver.
A arrogância é uma deformação moral; o preconceito, uma doença de educação; o desdém, uma chaga de quem se presume superior. Sócrates criou uma criatura que escapou ao seu controlo. Não pode mudar: de contrário, deixa de ser quem julga ser. E, sendo-o, na obstinação de quem não tem dúvidas, perde o respeito daqueles para os quais a democracia não existe sem comunicação.
Ao contrário de alguns preopinantes, suponho que, se a ministra da Educação fosse embora, abrir-se-iam as portas ao diálogo. Porque (é inevitável) irão aparecer novas regras de jogo e outras instâncias de organização que terão em conta as específicas oscilações históricas. Nascidas, não o esqueçamos, da "rua".
«DN» de 12 Mar 08

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4 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Excelente!
Nada a acrescentar e nada a retirar!
Bravo!

12 de março de 2008 às 10:40  
Blogger homoclinica said...

Imagine-se agora, que na sua sanha anti-despesista, o governo resolve aliviar as prisões.

Então, no alto da sua maioria absoluta, o governo impõe que os magistrados e advogados sejam avaliados em função das absolvições que conseguem: quanto menos réus mandarem para as prisões, melhor a classificação.

Depois, anunciam em grandes parangonas, na próxima campanha eleitoral, que diminuíram drasticamente o crime no País.

É uma situação como esta que está a acontecer no ensino.

Será um procedimento honesto?

12 de março de 2008 às 12:36  
Blogger Tio Quim said...

A triste conclusão que tiro é que em Portugal os partidos não merecem ter maiorias absolutas, e alguns portugueses não mereçem melhores governos que aqueles que temos tido.
Com Cavaco , houve braços de ferro e tique autoritários. Com Sócrates idem...

12 de março de 2008 às 15:42  
Blogger Ricardo Sardo said...

É verdade.
Mas também é verdade que a avaliação tanto contestada (e que motivou a manif) afinal já parece aceitável para os sindicatos, passando por um período experimental primeiro. Então não convocaram a manif para contestar precisamente "ESTA" avaliação?
E se afinal a aceitam (será que trairam os 100 mil que a contestaram no sabado nas ruas de Lisboa?), porque não se lembraram deste período experimental nas mais de 100 reuniões de negociação com o Ministério? Ou iam às reuniões apenas para dar a impressão que estavam abertos à negociação, mas com o objectivo único de irem adiando a aplicação da reforma?
Cumprimentos.

12 de março de 2008 às 19:13  

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